quarta-feira, 27 de julho de 2016

Pole dancer


O interfone toca e Enzo atende:

- Pois não?!
- Marido de aluguel!
- Quem?
- É o Clarício.
- Acho que é engano.
- Não pediu serviço de hidráulico e encanador?
- Pedi.
- Então é comigo. Pode abrir.

No banheiro, Clarício abre a caixa de ferramentas, sob olhares intrigados do dono da casa.

- Quem te indicou foi a Cidinha do 201, mas ela não me disse que você era…
- Marido de aluguel? Sou profissional completo, irmão.
- E ela é muito bem humorada.
- O que vai ser?
- Instalar o chuveiro e desentupir a pia.
- Mas isso é só um bico.
- Oi?
- Marido de aluguel é só bico.
- Clarício, vou te tratar como encanador, ok? Esse negócio de marido de aluguel, sei lá, me humilha um pouco.
- Pode me tratar como dançarino.
- Não entendi.
- Dançarino Clarício. Aliás, dançarino não. Pole dancer Clarício, melhor.
- Você é dançarino?
- Pole dancer.
- Isso é sério?
- Falei que meu ramo era outro. 
- Você vive de pole dance?
- Tento, né?! Viajo bastante com esse projeto.
- Viaja?
- Tô aqui pra etapa brasileira do Circuito Mundial de Pole Dance Masculino. E sou o melhor, modéstia à parte.
- Parabéns – disfarça o riso - Nem sei o que dizer.
- Veda-rosca, por favor.
- Vedar o quê?
- Pega o veda-rosca aí na caixa, irmão.
- Ah! É isso?
- Acontece que a próxima etapa é em Las Vegas e a grana pra passagem tá curta.
- Mas se você é campeão, não devia ter grana pra participar das etapas?
- Tá duvidando?
- Não, foi só uma pergunta.
- Ainda não sou campeão, mas sou o primeiro do ranking brasileiro.
- Existe ranking? 

Clarício não responde, parece contrariado.

- Tá, eu acredito.
- Pode perguntar pra Cidinha.
- Cidinha? A Cidinha do 201?
- É, ela já viu minha apresentação.
- Viu? Onde? Você tambem faz… michê?
- Tá me tirando?
- Olha, Clarício pole dancer, eu não quis duvidar de você. Isso é novidade pra mim. 
- O quê é novidade?
- Esse negócio de pole dance masculino, a Cidinha e tudo mais.
- Ah, porque só mulher pode dançar pendurada no cano.
- Não, achei curioso o lance da Cidinha, apenas. Parece pegadinha dela.
- Agora vai espalhar pro prédio que eu dancei pra Cidinha, vai?
- Eu?
- Aí perco meu bico com a vizinhança e no money for Vegas.
- Escuta, só encomendei um serviço. Se é pole dancer ou se dança pra minha vizinha, tanto faz.
- Relaxa, pra mim também é novidade atender gente feito você.
- Por quê?
- Porque, desculpa a sinceridade, homem sozinho se vira, né?!
- Não entendi. 
- Geralmente resolve a bucha sem precisar de “marido”.
- Já falei que não sabia que você era um…
- Fica entre nós.
- Por ser homem, tenho que manjar de consertos?
- Só disse que era incomum, meu parça.
- Não sou seu parça, sou o otário que te descola dinheiro fácil.
- Ih, ficou ofendido.
- Porque é preconceito.
- Doeu em você, foi? Desculpa, mas meu preconceito não é pior que o seu. 
- Não fui preconceituoso, você que é paranoico. 

Clarício abandona o serviço e encara Enzo, um tanto ofendido e um tanto ameaçador.

- Vai me agredir, seu Clarício, é isso?
- Não, vou argumentar: o que tá rolando aqui é conflito de classe. 
- Oi?
- É! O pobre coitado do pole dancer não pode ir pra Vegas, não pode pegar a vizinha rica. 
- Você “pegou” a Cidinha?
- “Só pode ser michê”, aposto que tá pensando nisso até agora – ressente-se.
- A questão é que eu e a Cidinha temos um…
- Você não se conforma por eu levar uma vida mais da hora que a sua.

A campainha toca e Enzo não demonstra surpresa ao abrir e ver Cidinha entrar sem cerimônia.

- E a pia, consertou? – pergunta enquanto atravessa a sala de pijama – Pole dancer Clarício taí?
- Cidinha, você mandou um michê vir aqui? Cidinha, vem cá! – persegue a moça até o banheiro.
- Oi, Clarício! E Vegas, vai rolar, baby?
- Fala, minha gata! – beija a bochecha que Cidinha oferece - Olha a caca que seu vizinho arrumou aqui.

Enzo e Cidinha olham enojados para um enorme tufo capilar nas mãos do dançarino.

- Aparei a barba na pia.
- Que barba, Enzinho? Você nunca teve – entrega a vizinha.
- Isso aqui tem outro nome: é pentelho! – esclarece o marido de aluguel.
- Enzinho!
- Pois é, Cidinha, seu vizinho me trata como inferior porque cultuo o corpo, mas depila o saco na pia. 
- Eu não fiz isso.
- Enzinho, você tá discriminando o Clá? Não acredito.
- Já me acostumei. Gente como o seu Enzo acha que artista é vagabundo, gentinha.
- Artista? – ri Enzo com ironia.
- É artista sim – defende Cidinha - Mostra aí Clá. Trouxe o pole portátil?
- Que isso, Cidinha?! – encabula-se Clarício - A hora de trabalho é sagrada.
- Sagrada?! Já fez lá em casa, esqueceu?
- Ok, só um passinho – tira da caixa de ferramentas um cano de metal portátil e dirige-se até a sala.
- Ei, termina o serviço antes – ordena Enzo, antes de ter a boca tapada por Cidinha.

O pole dancer aciona o cano portátil, que cresce de tamanho.

- Você leva essa porra de cano portátil pra todo lugar? 
- Sim, senhor. Inclusive outro dia usei pra salvar um pugzinho que caiu no bueiro.
- Olhaí, o Clá é um herói – derrete-se Cidinha. 

Clarício passa cola na extremidade do cano e o fixa ao chão. Em seguida dá play em uma música do Jamiroquai em seu celular.

- Ele passou cola? Vai foder meu piso.
- Relaxa, depois a gente limpa – tranquliza Cidinha, causando desconfiança em Enzo.
- Sei. Queria um bueiro igual ao do pugzinho pra não ter que ouvir essa músi… o que é isso? – espanta-se ao ver Clarício livrar-se de uma vez só dos trajes, ficar de sunga e pendurar-se no cano.
- É velcro - explica Cidinha - Legal, né?! 
- E tá besuntado! Como esse cara faz isso? Já acorda assim?
- Ele é pole dancer. Deve ter um verniz natural.
- Essa música alta vai perturbar os vizinhos.
- Ai, Enzinho, vai tomar seu floral, vai – recomenda Cidinha, sem deixar de aplaudir e dançar ao ritmo da música.

Um rosto curioso surge por trás da porta entreaberta. É o zelador do prédio, acompanhado de outro homem, de macacão, carregando um botijão de gás.

- Seu Enzo, desculpa entrar assim. Acho que o senhor não ouviu o interfone, por causa da música, então o rapaz tocou no meu – olha para o sujeito pendurado no cano – Este aí não é o…?
- Vai falar que também conhece a peça? – irrita-se Enzo.

O homem do gás espicha a cabeça da cozinha, onde instala o botijão, e se mete na conversa.

- Esse aí é o cara da TV? – grita, para ser escutado.
- Ele foi no Otávio Mesquita - revela o zelador - O cabra tá de parabéns.
- Isso não tá acontecendo.
- Enzo, o Clarício é energia pura, é vida! Você tinha que se inspirar no exemplo dele – empolga-se Cidinha.
- Que exemplo?
- Ele se vira pra cuidar do filho deficiente – intromete-se novamente o homem do gás.

Leves batidas na porta. Outra pessoa se anuncia, para desespero do anfitrião involuntário.

- Seu Benito! Me desculpa pela música alta – vira-se furioso para Cidinha e cia – Olhaí, vocês conseguiram trazer o síndico até minha casa.
- Fica tranquilo, seu Enzo. Sou só o humilde enviado de umas senhoras que estão lá embaixo, na portaria – anuncia o senhor de bigode.
- Como assim?
- Elas souberam que tem celebridade no prédio e pediram pro senhor Clarício se apresentar lá no playground, se não for incômodo, claro.

Após um ultimo rodopio de ponta cabeça, Clarício cai de pé como um legítimo ginasta olímpico. Quase todos aplaudem.

- Mas tem que rolar um cachezinho, seu Benito! – intervém Cidinha - O Clá tá no horário de trabalho dele.
- Inclusive meu banheiro tá esperando.
- Acho que elas não vão negar uma contribuição.

Clarício descola o pole com uma flanela embebida em um produto químico estranho, pega a caixa de ferramentas e desce sem titubear. A pequena plateia o acompanha em júbilo. 

- E o meu chuveiro?
- Banho frio faz bem pra seborreia – debocha Cidinha, antes de fechar a porta do elevador.  


Enzo encara o tufo de pentelhos no chão do banheiro, refletindo sobre a própria inaptidão.

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