segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Dreads


- Foda-se a minha etnia! Eu sigo o Rei dos Reis e seu pedido é inadmissível.
- Então vem, Rei dos Reis, Leão Conquistador da Tribo de Judah, ruge pra mim.
- Que isso, mulher!? Eu sou um humilde servo. Só quem merece o título de Leão é Hailê Selassiê.
- Se tu é servo, me sirva ao menos uma vez, seu vagabundo!
- Sou servo porém livre! Além do mais, isso é uma puta heresia. Anti-higiênica, inclusive.
- Porra, mas que rastafari chato você é! Bob curtia uma sacanagem, não curtia? Olha a caralhada de filho que ele deixou.
- Deixou, mas duvido que penetrou o dread na vagina de alguém.
- Não era bem na vagina que eu queria, amor.
- Você sabe o trabalho que dá pra cultivar e manter isso aqui?
- Ai, que vaidoso.
- Não podemos fazer outra coisa?
- Vamos inaugurar um novo fetiche!
- Você tá bêbada.
- Dreadfucking?
- Desculpa, mas não é só um visual descolado.
- Ah, claro! Um loirinho de Moema que cultua um Deus Etíope. Toma vergonha nessa cara.
- Toma você! Quem vai ficar com o dread exalando cu por aí serei eu. É indigno!
- Devia te excitar.
- Não tenho essa perversão.
- Nem se te compensar depois pela dádiva?
- Parece um favor bem abjeto.
- Se você fosse um negão de verdade, talvez eu não estivesse quase implorando por esse “favor”.
- Tá insinuando que tenho o pau pequeno porque sou branco?
- Insinuando que você não gosta.
- Ok, então vira! Depois não reclama se te contaminar. 
- Sabia!
- O quê?
- Pode ser mórmon, muçulmano, satanista, o que for!
- Como assim?
- Bastou duvidar da masculinidade que você já caga sobre o Levítico e limpa a bunda com o Velho Testamento.
- Ainda podemos desistir.
- Vem cá, predador! Mas com jeitinho porque eu nunca fiz isso.




sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Tinder


Andrício é levado pela moça ruiva até uma mesa cheia de desconhecidos. Percebendo que não ficariam a sós, sente ameaçada a possibilidade de tirar a cueca naquela noite. Ainda assim, procura agir naturalmente:

- Estão comemorando alguma coisa?
- O teste daquela minha amiga ali - aponta a moça na outra ponta da mesa - que deu negativo. 
- Não tava pronta pra cegonha?
- Era teste de HIV.
- Ah.
- O ex é meio promíscuo, sabe?!- susurra – E o dele deu positivo. Maior bafo. Senta aí que eu te conto.
- Então… acho melhor eu partir. Trabalho amanhã – blefa Andrício, mantendo uma insistente semiereção.
- Como assim? Acabou de chegar.
- Achei que seria só nós dois, tipo um date.
- Ué, mas eu falei isso? – franze a testa, tentando se lembrar.
- Deu a entender pelo Tinder.
- Ah, o Tinder.
- Entendi errado?
- Relaxa, meus amigos são ótimos. 
- Mas vão ficar me julgando. Tipo: quem é o loser que se abalou até aqui atrás de alguém que nem conhece e mesmo depois de descobrir que a moça tava em outro rolé, se submeteu a ser coadjuvante? É como passar o aniversário na festa de outra pessoa, entende? 
- Não tá falando sério, né?!
- Seria melhor se a gente saísse daqui.
- Puxa uma cadeira aí, vai - ordena, com doce impaciência, ignorando a anêmica tentativa de fuga de Andrício.

Após certa dificuldade em achar cadeira no bar lotado, enfim senta-se ao lado da bela ruiva que motivara-lhe a sair de casa naquela noite fria de terça, mesmo exaurido pelo trabalho, sob a autoimposta obrigação de fugir da rotina, também conhecida como “transar”.

- Você é o primeiro perfumista que eu conheço - ela puxa papo.
- Perfumista? 
- É, não faz perfume? Tô louca?
- Não, sou turismólogo.
- Vixe! E a promessa de criar uma fragrância pra mim? – questiona, simpática.
- Só poderia indicar destinos turísticos mesmo – responde, arrependendo-se do tom humilde, pois jamais envergonhara-se de sua profissão antes.
- Difícil com essa crise. Mas deixa seu cartão – ironiza, desconcertando-o ainda mais.
- Tinha dito que achava minha profissão original, lembra? 
- Desculpa, gato, muitas janelas abertas ao mesmo tempo, me confundo.
- Parecia querer me ver – sente a autoconfiança e a semiereção arrefecerem.
- Peraí, foi você que me mandou foto do pau?
- Nunca fiz isso.
- Pena, desse eu me lembro.
- Te mandam mesmo o…
- Ih… – contorce o rosto, deixando a resposta no ar.
- Bom, prefiro mostrar pessoalmente.
- Calma, cara.

Se continuasse demonstrando tanta impaciência, poderia afugentá-la, pensa. Apesar da prudência indicar que a emoção ideal seria a expectativa controlada, não consegue evitar outra crise de orgulho ferido:

- Você parece não ter ideia de quem eu sou. 
- Péra, qual o seu nome?
- Andrício. 
- Haha... não fode. 
- Não fode você. 
- Nome incomum. Era pra eu me lembrar.
- Então por que chegou em mim no balcão?
- Você me olhou tão empolgado. Achei que tivéssemos combinado algo, sei lá.
- E combinamos! Insistiu pra eu vir aqui, inclusive.
- Gosto daqui.
- Marcou mais algum date pra hoje? – pergunta, atravessando de vez a fronteira entre a impaciência e a animosidade, sem jamais ter sido agradável de verdade.
- Nem sei, Aparício. Falo com tanta gente.
- Andrício.
- Meu, você é meio exigente. Primeiro pede exclusividade, agora quer que eu lembre de coisas que disse chapada. Too much pro meu pobre cérebro.
- Desculpa, Silvia - ele põe as mãos sobre o peito, admitindo culpa - Vamos começar de novo essa conversa?

Ela abafa uma risada.

- Que foi?
- Quem é Silvia?
- Uai, não é o seu…?
- Lá vem você dizer que eu falei isso e aquilo de novo.
- Você não é a Silvia? – saca o celular do bolso e o consulta.
- Sua Silvia é ruiva também? 
- Merda, não vi a mensagem. Foi embora há vinte minutos.
- Essa mulher tá te enganando. Tenho certeza que sou a única ruiva aqui desde que cheguei.
- Vocês deviam colocar fotos nítidas nessa porra de aplicativo!
- Relaxa porque o negócio ainda pode ficar bom pro seu lado – dá-lhe um tapinha no joelho.
- Como?
- Em primeiro lugar – estende a mão – prazer, Ingrid.
- Prazer. 
- Tem alguém aqui no bar que adorou você.
- Mas eu nem socializei, fiquei só aqui sentado.
- Pra você ver o seu poder de sedução. Posso chamar...?
- Não sei, tinha outros planos.

Ingrid se levanta e grita para alguém no balcão.

- Clinton, chega aí! 

O sorridente barbudo de turbante aproxima-se cheio de ginga, mas detém-se ao perceber a careta de Andrício.

- Bom, chegamos ao famoso “limite” – bate na mesa Andrício.
- Meu, não precisa pegar o Clinton. Ele te curtiu, podem ser amigos.
- Ele é mais sensato que você, tanto que ficou lá na dele.
- Clinton é sensível, meu bem. Captou sua aura negativa.
- Por acaso você chegou em mim por causa dele? 
- Sim e não. Tem dois lados de ver a coisa.
- Quero saber do lado bom. 
- Pode ser um copo meio cheio... ou meio vazio - mantém-se enigmática.
- Bom, eu prefiro meu cu totalmente vazio, ok? 
- Se acha assim, devia procurar outra coisa, tipo aquela mina ali que não tira os olhos de você.
- Quem...? – a visão da pessoa parece causar vertigem em Andrício.
- Se você visse sua cara...
- Tem banheiro aqui? 

Tenta escapulir sem sucesso, pois a mulher misteriosa já estava ao seu lado. 

- Tô surpresa de te ver aqui.
- Oooi – simula uma simpatia tosca – Como você tá?
- Bem. E a Ju, cadê?
- Viajou.
- Bacana – responde seca, espichando os olhos para Ingrid.
- Esta é a Ingrid, uma amiga.
- Oi! A gente se conheceu pelo Tinder – intromete-se Ingrid – Quer sentar?
- Bom...  – fulmina Andrício com o olhar - Não vou me meter nos seus assuntos. Manda um beijo pra Ju.

Impotente, Andrício observa a moça ir embora, concluindo estar irreversivelmente encrencado. 

- Cê quer me foder, né? 
- Eu não. Você que quer me foder. 
- Você mentiu!
- Por que não me disse que tinha rolo com alguém?
- Não tenho, quer dizer, não sei mais, porque aquela é a melhor amiga dela.
- E não ia me contar?
- Deveria? Vim aqui encontrar outra pessoa, esqueceu?
- Mas queria me comer.
- Não, queria a Silvia.
- E o que ela tem de tão diferente? Vocês nem se conhecem.
- Olha, só me arrisquei porque ela tem algo sim.
- Tipo?
- Bom... melhor eu ir. Já me fodi o suficiente.
- Ah não, agora fala.
- Ela não é totalmente mulher.
- É trans?
- É, mais ou menos isso.
- Que máximo! 
- Mulher eu já tenho.
- Peraí! Você me confundiu com a... - arregala os olhos - Acha que eu tenho cara de trans? 
- Não sei, é que hoje em dia...
- Meu Deus!
- Quanto mais feminina melhor, né?!
- Mano, olha o Clinton ali a fim. Tá perdendo tempo por quê?
- Tá doida? Não sou gay, só curto... ou melhor, tenho curiosidade com...
- Pau?
- Trans – olha ao redor, constrangido com a admissão – E seu amigo é muito peludo.
- Bom, então ninguém aqui pode te ajudar.
- Tudo bem. Agora só consigo pensar na merda que vai dar com a Ju.
- Só se rolasse um threesome, que que cê acha? Eu, você e o Clinton.
- Tá de onda, né?
- Uma mão lava a outra. Eu curto com dois caras, você tá atrás de aventura flex e o Clinton é da orgia  – bate palmas, excitada - E aí, partiu?
- Esse é o copo meio cheio de que você tava falando?
- Vai ou não? Sem enrolar.
- Tá.
- Clinton – grita de novo – Pega a catuaba e vem!



quarta-feira, 27 de julho de 2016

Pole dancer


O interfone toca e Enzo atende:

- Pois não?!
- Marido de aluguel!
- Quem?
- É o Clarício.
- Acho que é engano.
- Não pediu serviço de hidráulico e encanador?
- Pedi.
- Então é comigo. Pode abrir.

No banheiro, Clarício abre a caixa de ferramentas, sob olhares intrigados do dono da casa.

- Quem te indicou foi a Cidinha do 201, mas ela não me disse que você era…
- Marido de aluguel? Sou profissional completo, irmão.
- E ela é muito bem humorada.
- O que vai ser?
- Instalar o chuveiro e desentupir a pia.
- Mas isso é só um bico.
- Oi?
- Marido de aluguel é só bico.
- Clarício, vou te tratar como encanador, ok? Esse negócio de marido de aluguel, sei lá, me humilha um pouco.
- Pode me tratar como dançarino.
- Não entendi.
- Dançarino Clarício. Aliás, dançarino não. Pole dancer Clarício, melhor.
- Você é dançarino?
- Pole dancer.
- Isso é sério?
- Falei que meu ramo era outro. 
- Você vive de pole dance?
- Tento, né?! Viajo bastante com esse projeto.
- Viaja?
- Tô aqui pra etapa brasileira do Circuito Mundial de Pole Dance Masculino. E sou o melhor, modéstia à parte.
- Parabéns – disfarça o riso - Nem sei o que dizer.
- Veda-rosca, por favor.
- Vedar o quê?
- Pega o veda-rosca aí na caixa, irmão.
- Ah! É isso?
- Acontece que a próxima etapa é em Las Vegas e a grana pra passagem tá curta.
- Mas se você é campeão, não devia ter grana pra participar das etapas?
- Tá duvidando?
- Não, foi só uma pergunta.
- Ainda não sou campeão, mas sou o primeiro do ranking brasileiro.
- Existe ranking? 

Clarício não responde, parece contrariado.

- Tá, eu acredito.
- Pode perguntar pra Cidinha.
- Cidinha? A Cidinha do 201?
- É, ela já viu minha apresentação.
- Viu? Onde? Você tambem faz… michê?
- Tá me tirando?
- Olha, Clarício pole dancer, eu não quis duvidar de você. Isso é novidade pra mim. 
- O quê é novidade?
- Esse negócio de pole dance masculino, a Cidinha e tudo mais.
- Ah, porque só mulher pode dançar pendurada no cano.
- Não, achei curioso o lance da Cidinha, apenas. Parece pegadinha dela.
- Agora vai espalhar pro prédio que eu dancei pra Cidinha, vai?
- Eu?
- Aí perco meu bico com a vizinhança e no money for Vegas.
- Escuta, só encomendei um serviço. Se é pole dancer ou se dança pra minha vizinha, tanto faz.
- Relaxa, pra mim também é novidade atender gente feito você.
- Por quê?
- Porque, desculpa a sinceridade, homem sozinho se vira, né?!
- Não entendi. 
- Geralmente resolve a bucha sem precisar de “marido”.
- Já falei que não sabia que você era um…
- Fica entre nós.
- Por ser homem, tenho que manjar de consertos?
- Só disse que era incomum, meu parça.
- Não sou seu parça, sou o otário que te descola dinheiro fácil.
- Ih, ficou ofendido.
- Porque é preconceito.
- Doeu em você, foi? Desculpa, mas meu preconceito não é pior que o seu. 
- Não fui preconceituoso, você que é paranoico. 

Clarício abandona o serviço e encara Enzo, um tanto ofendido e um tanto ameaçador.

- Vai me agredir, seu Clarício, é isso?
- Não, vou argumentar: o que tá rolando aqui é conflito de classe. 
- Oi?
- É! O pobre coitado do pole dancer não pode ir pra Vegas, não pode pegar a vizinha rica. 
- Você “pegou” a Cidinha?
- “Só pode ser michê”, aposto que tá pensando nisso até agora – ressente-se.
- A questão é que eu e a Cidinha temos um…
- Você não se conforma por eu levar uma vida mais da hora que a sua.

A campainha toca e Enzo não demonstra surpresa ao abrir e ver Cidinha entrar sem cerimônia.

- E a pia, consertou? – pergunta enquanto atravessa a sala de pijama – Pole dancer Clarício taí?
- Cidinha, você mandou um michê vir aqui? Cidinha, vem cá! – persegue a moça até o banheiro.
- Oi, Clarício! E Vegas, vai rolar, baby?
- Fala, minha gata! – beija a bochecha que Cidinha oferece - Olha a caca que seu vizinho arrumou aqui.

Enzo e Cidinha olham enojados para um enorme tufo capilar nas mãos do dançarino.

- Aparei a barba na pia.
- Que barba, Enzinho? Você nunca teve – entrega a vizinha.
- Isso aqui tem outro nome: é pentelho! – esclarece o marido de aluguel.
- Enzinho!
- Pois é, Cidinha, seu vizinho me trata como inferior porque cultuo o corpo, mas depila o saco na pia. 
- Eu não fiz isso.
- Enzinho, você tá discriminando o Clá? Não acredito.
- Já me acostumei. Gente como o seu Enzo acha que artista é vagabundo, gentinha.
- Artista? – ri Enzo com ironia.
- É artista sim – defende Cidinha - Mostra aí Clá. Trouxe o pole portátil?
- Que isso, Cidinha?! – encabula-se Clarício - A hora de trabalho é sagrada.
- Sagrada?! Já fez lá em casa, esqueceu?
- Ok, só um passinho – tira da caixa de ferramentas um cano de metal portátil e dirige-se até a sala.
- Ei, termina o serviço antes – ordena Enzo, antes de ter a boca tapada por Cidinha.

O pole dancer aciona o cano portátil, que cresce de tamanho.

- Você leva essa porra de cano portátil pra todo lugar? 
- Sim, senhor. Inclusive outro dia usei pra salvar um pugzinho que caiu no bueiro.
- Olhaí, o Clá é um herói – derrete-se Cidinha. 

Clarício passa cola na extremidade do cano e o fixa ao chão. Em seguida dá play em uma música do Jamiroquai em seu celular.

- Ele passou cola? Vai foder meu piso.
- Relaxa, depois a gente limpa – tranquliza Cidinha, causando desconfiança em Enzo.
- Sei. Queria um bueiro igual ao do pugzinho pra não ter que ouvir essa músi… o que é isso? – espanta-se ao ver Clarício livrar-se de uma vez só dos trajes, ficar de sunga e pendurar-se no cano.
- É velcro - explica Cidinha - Legal, né?! 
- E tá besuntado! Como esse cara faz isso? Já acorda assim?
- Ele é pole dancer. Deve ter um verniz natural.
- Essa música alta vai perturbar os vizinhos.
- Ai, Enzinho, vai tomar seu floral, vai – recomenda Cidinha, sem deixar de aplaudir e dançar ao ritmo da música.

Um rosto curioso surge por trás da porta entreaberta. É o zelador do prédio, acompanhado de outro homem, de macacão, carregando um botijão de gás.

- Seu Enzo, desculpa entrar assim. Acho que o senhor não ouviu o interfone, por causa da música, então o rapaz tocou no meu – olha para o sujeito pendurado no cano – Este aí não é o…?
- Vai falar que também conhece a peça? – irrita-se Enzo.

O homem do gás espicha a cabeça da cozinha, onde instala o botijão, e se mete na conversa.

- Esse aí é o cara da TV? – grita, para ser escutado.
- Ele foi no Otávio Mesquita - revela o zelador - O cabra tá de parabéns.
- Isso não tá acontecendo.
- Enzo, o Clarício é energia pura, é vida! Você tinha que se inspirar no exemplo dele – empolga-se Cidinha.
- Que exemplo?
- Ele se vira pra cuidar do filho deficiente – intromete-se novamente o homem do gás.

Leves batidas na porta. Outra pessoa se anuncia, para desespero do anfitrião involuntário.

- Seu Benito! Me desculpa pela música alta – vira-se furioso para Cidinha e cia – Olhaí, vocês conseguiram trazer o síndico até minha casa.
- Fica tranquilo, seu Enzo. Sou só o humilde enviado de umas senhoras que estão lá embaixo, na portaria – anuncia o senhor de bigode.
- Como assim?
- Elas souberam que tem celebridade no prédio e pediram pro senhor Clarício se apresentar lá no playground, se não for incômodo, claro.

Após um ultimo rodopio de ponta cabeça, Clarício cai de pé como um legítimo ginasta olímpico. Quase todos aplaudem.

- Mas tem que rolar um cachezinho, seu Benito! – intervém Cidinha - O Clá tá no horário de trabalho dele.
- Inclusive meu banheiro tá esperando.
- Acho que elas não vão negar uma contribuição.

Clarício descola o pole com uma flanela embebida em um produto químico estranho, pega a caixa de ferramentas e desce sem titubear. A pequena plateia o acompanha em júbilo. 

- E o meu chuveiro?
- Banho frio faz bem pra seborreia – debocha Cidinha, antes de fechar a porta do elevador.  


Enzo encara o tufo de pentelhos no chão do banheiro, refletindo sobre a própria inaptidão.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Você me decepcionou favoravelmente


- Me excluiu?
- Sim, geral tá assumindo um lado. E o meu, definitivamente, não é o seu.
- Como assim? Eu não curto Bolsonaro e essas merdas.
- Mas passou o dia postando fotos de indoor sky diving
- Você manja?
- Sei o nome porque pesquisei.
- E?
- Não tô interessado no seu hobby escroto. A pauta hoje é outra.
- Hahahaha... meu, você não imagina como é animal!
- Pelo menos pula de paraquedas de verdade, caralho. Não fica aí nessa punhetinha aérea, pedindo aplauso. Isso equivale a bicicleta de rodinhas.
- Vou pular em breve. Tava me preparando.
- Também excluí paraquedistas.
- E os fãs do Bolsonaro?
- Não tinha nenhum.
- E por isso veio implicar comigo.
- O Brasil caindo e você pulando em tubinho de ar, mostrando linguinha, fazendo hang loose. Você me deprime.
- É pessoal, né babaca?!
- Não, também excluí três celíacos e dois veganos que pagam de virtuosos da alimentação.
- Você é um infeliz.
- Te dei uma chance. Achei que hoje viria seu post engajado. Não veio, tchau.
- Quer saber?! Pode excluir! Mas vou te dar um motivo de verdade.
- Nem precisa.
- Sabe a Isabela, sua antiga namorada? Pegava sempre.
- Pode pegar, uai.
- Enquanto ela estava com você.
- Mentira.
- Sempre quando você ia à manifestação.
- Meu feeling tava certo.
Duvido que desconfiava.
- Você é um conspirador que caga pra qualquer tipo de aliança.
- Hahaha… gozei no tubinho de ar dela.
- Tubinho de ar?
- No cu, Vítor.
- Ah, era uma piada?
- Não curtiu? 
- Tu é um misógino que trai a confiança de uma mulher.
- Não sou eu que tenho problema.
- Rapaz, você pode até ter comido minha namorada, mas sabe o que eu fiz?
- Não me interessa.
Base jumping.
- Não fode.
- Não sou homem de ficar pulando em tubinho de vento não, porra!
- Cadê foto?
- Só carente feito você precisa postar fotinho.
- Queria te ver com aquela roupa de esquilinho voador ridícula.
- Tem vários programas sobre base jumping no canal Off. Não me lembro de ter visto algum sobre tubinho de vento.
- Você blefa.
- E você não é tão idiota quanto eu pensava.
- Vindo de um corno ressentido, tomarei como elogio.
- É sério, você me decepcionou favoravelmente.
- O que isso significa?
- Nada. Que vai continuar excluído.

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Fungos emocionais


Londres, 30 de janeiro de 1969

Max ergue-se na ponta dos pés para tentar localizar alguém em meio ao movimento anormal da rua Savile Row.

- Nicky, aqui! – identifica a moça de casaco pesado que se acotovela entre transeuntes e curiosos.
- Sem beijinho - evita o cumprimento do rapaz - Vai falando.
- Vamos subir.
- Por que essa multidão aqui na porta? Eles estão aí? – arregala os olhos – Max, eles estão?
- Você vai ter que merecer essa informação – ri para a moça, sem ser correspondido.
- Sai, groupie suja! – Nicky afasta uma menina de poncho que obstrui a porta do prédio.

Max puxa Nicky pra dentro do famoso edifício da Apple Records. Abre a porta do elevador e sinaliza para ela entrar.

- Me conta o que tá acontecendo, Max! Você disse que tinha a ver com eles. 
- Calma – aperta o botão do último andar.

Pouco depois o elevador enguiça entre dois andares.

- Ué, parou?
- Parece que sim.
- Por isso não entro em elevador sem ascensorista.
- Nicky, não vou suportar essa situação.
- Que situação? Faz essa merda funcionar, tenho claustrofobia.
- Eu tenho uma surpresa pra você, mas antes queria saber se tudo vai voltar a ser como antes.
- Antes? A gente terminou, já era, esqueceu?
- Você terminou. Eu ando doente, arrasado, sem saber o que houve.
- Não fode! Você é um ciumento psicótico que desconfia até do meu pôster do Ringo.
- O Ringo é a ponta do iceberg. Você vive atrás de todos os roqueiros piolhentos desta ilha.
- Me respeita! Depois pergunta por que foi chutado.
- Você quer que eu morra?
- Seu problema é mental, não físico – empurra o rapaz e aperta o alarme.
- Ninguém vai aparecer. Tá todo mundo no terraço.
- O que tá acontecendo, afinal?
- Eu te digo: minha imunidade baixou e contraí fungos no pé. O médico disse que é depressão – começa a desamarrar os tênis.
- Fungos emocionais? Conte-me mais.
- Começou aqui na sola e agora tá chegando à planta do pé – exibe um dos pés descalços - Não imagina como dói. Ao menos alivia a dor do coração.
- Se é o melhor que pode fazer pra me comover, já era.
- A tristeza é feia, Nicky.
- E também fede!
- Também tenho furúnculos no quadril e ouvidos entupidos, mal escuto.
- Deve ser a natação.
- Meu ouvido fabrica mais cera quando tô angustiado.
- Sua hipocondria não tem limites.
- Não é psicológico. Tô mostrando os efeitos no meu corpo.                                                      
- Foda-se você e suas nojeiras.
- Nicky, minha carcaça tá literalmente apodrecendo.          
- Surreal! Você não quer reatar porque se arrepende, mas por estar coberto de bolor.                                                           
- Meu antídoto é você.
- Chega, maluco, vou gritar.

Max a segura pelo braço.

- Por que o Ringo? 
- Ai, Deus! Porque ele não é estrelinha. Por isso. 
- Você que pensa.
- Além do mais, todos têm um beatle preferido.
- Eu não tenho.
- Tem sim, é o tal do Martin.
- George Martin.
- Ter o produtor como beatle favorito diz muito sobre seu caráter.
- Ele é gênio, é o meu guru.
- Guru? Você é só um auxiliar de técnico de som.
- Mas é graças ao meu emprego que você tá aqui dentro.
- Presa no elevador? Cadê vantagem?
- Se não fosse tão teimosa…
- Peraí, você parou o elevador de propósito?

Max se cala, enquanto um som externo distrai Nicky.

- Tá ouvindo isso? – ilumina-se, tremendo de emoção.
- O quê?
Don`t let me down - aperta o braço do ex-namorado.
- Não é minha intenção.
- É a música, idiota.
- Ah sim.
- Max, eles estão tocando em algum lugar do prédio! Você tem que me levar lá!
- A ideia era essa, mas antes você tinha que me perdoar.
- Faz essa porra funcionar, caralho!

Max aperta botões, mexe na grade da porta, mas nada.

- Não entendo, não era pra ficar parado tanto tempo.
- Get Back! Get Back!
- Não adianta.
- É a música, porra!
- Enguiçou de verdade, desculpa.
- Eu não acredito! – escorre pela parede até o chão, dramática.
- Calma – tenta afagá-la.
- Não chega perto!
- Isso aqui tá me lembrando a situação do fab four – pronuncia fab four com ironia explícita.
- O que eles têm a ver com essa doença que a gente vive?
- Eles também estão doentes, Nicky.
- Você me enganou.
- Pra mim a causa era justa.
- Pois é, somos dois interesseiros.
- Feito o John e o Paul. Entendeu?
- Do que você tá falando, seu lunático?
- Eles só estão nessa pela grana. A casa caiu faz tempo.
- Não fala bobagem, essa parceria é pra sempre.
- Também achei que a nossa fosse. Agora a gente tá aqui assim, unidos pelo interesse. O elevador é o nosso Fab Four.
- Nossa, que inteligente sua analogia – desdenha.
- O tempo me dará razão.
- A diferença é que os Beatles estão presos em um sonho bom, enquanto eu tô presa em um conto mal escrito.
O pesadelo deles é estarem juntos.
Para de falar isso, por favor, ou meu mundo vai deixar de fazer sentido.
- Ok, então não falo.

Após vinte minutos aprisionados no que Max, em momento de perspicácia duvidosa, definiu com “submarino de mágoa”, sons de engrenagens e cordas pouco lubrificadas trazem alívio. 

- Tá subindo! Tá subindo! – Nicky vibra
- Até que enfim! Nunca uma viagem de elevador durou tanto.

Nicky cantarola The long and winding road e os dois riem. Por um momento dividem uma expectativa boa. O elevador chega, finalmente.

- E agora, como faz pra chegar ao terraço? - pergunta Nicky, ofegante de ansiedade.
- Tem que subir a escada e…
- Ok, eu acho! – abre a grade do elevador com vitalidade, mas é barrada por alguém.
- Vai aonde, moça? – pergunta o sujeito fardado – Senhor, achei quem tava impedindo o acesso.

Um policial mais velho se aproxima sacudindo a cabeça com ar de reprovação.

- O senhor pode nos dar licença? Temos autorização pra subir. Ele trabalha aqui – aponta para Max.
- Vocês descem com a gente - conduz os dois de volta ao elevador.
- Descer? Por quê?
- Tentar barrar a justiça é crime, moça.
- Como assim barrar, seu policial? – pergunta Max, timidamente.
- Acha que é mole subir tantos andares de escada?
- Ninguém é preso por ficar em elevador enguiçado.
- Não é prisão, rapaz. Por enquanto só vão nos explicar umas coisinhas.
- Mas os Beatles estão no terraço. Não faz isso com a gente! – implora Nicky.
- Estavam. Já mandamos parar com a desordem.
- Max, pelo amor de Deus – choraminga – quero vê-los.
- Acho que não vamos ter outra chance.
- Eles vão acabar mesmo? – aterroriza-se Nicky, indo da desilusão à ira em um segundo  – Eu vou pegar aquela japa de porrada!
- Calma, moça. Você não tá em posição de ameaçar ninguém – intervém o policial velho.
- Seu covarde! Vai lá prender o Lennon. Quero ver!
- É o que eles querem – responde o policial - Não vou dar o gostinho.
- Nicky – susurra para a ex-namorada - Vai me dar outra chance?
- Max, a gente tá sendo preso, percebeu? Olha o embaraço.

A porta se abre e os dois são escoltados em meio a uma pequena multidão. Ao ver um dos policiais se distanciar com Nicky, Max grita, quase em pânico:

- Ei, nao pode me dizer?
- O sonho acabou! – grita Nicky de volta.

Os dois são colocados em viaturas separadas.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Cu


- Bel, sobre ontem, eu…
- Gostou, né?! - sorri enquanto coloca o sutiã.
- Não é isso.
- Não? Poxa...
- Nunca tínhamos feito aquilo, mas ainda assim não vai dar.
- Não vai dar...?
- Não quero voltar a namorar.
- Quem pediu isso?
- Você tava bêbada, parecia frágil. Só quis te tirar daquele bar, te consolar.
- E aí aproveitou o embalo pra comer meu cu.
- Péra, foi você que ofereceu.
- Foi um teste.
- Sei bem o que você queria.
- Queria ver se o seu oportunismo te ajudaria dessa vez.
- Oportunismo? Você usou o seu… usou essa tática aí.
- Eu usei meu cu pra te segurar?
- Não?
- Agora meu cu virou super trunfo? - veste a calça de moletom - Acha que eu preciso disso?
- Precisar não precisa, mas usou o ânus como carta coringa sim.
- Você não me conhece mesmo.
- Não tem problema nenhum. 
- Caio, quer saber mesmo o que eu queria? 
- Acho que não.
- Pois eu digo: queria simplesmente dar o cu. 
- Isso esclarece tudo.
- Mas NÃO pra te segurar, querido, e sim porque gosto de sentir prazer.
- Claro.
- E por gostar de sentir prazer, quis te dar a última chance de me proporcionar algum.
- Que feio, vai cuspir no prato que comeu?
- Sim. Até gostava de você, mas vivia frustrada.
- Então tomara que tenha aproveitado ontem, pois não vai rolar mais.
- Só constatei o óbvio: você não sabe comer cu, Caio.
- Avaliou isso em uma noite?
- Todo sem jeito, afobado, como se estivesse em vaga proibida com pisca alerta ligado, nem uma maldita cuspidinha. Se eu não tivesse tanta paciência, teria te mandado ir dormir na sala.
- Dormir na sala? É você que me persegue desde o nosso fim.
- Pois o teste foi bom pra eu me desiludir de vez.
- Acabei com minha noite pra cair nessa arapuca e tu ainda vem me esculachar?
- Quer que eu minta? Você no papai e mamãe, vá lá, mas pra sodomia ainda é mirim.
- Recalcada.
- Caio, você não gosta de variar. Que mal há nisso? Vai evoluir.
- Acho anal supervalorizado sim, porém não significa que não goste.
- E praticar com a namorada que é bom, nada, né?!
- Não achei que a EX-NAMORADA gostasse.
- Xô te explicar: a mina que disser que não gosta tá mentindo.
- E se eu não quisesse? Acha seu cu tão irresistível assim?
- Acho. E também acho você incompetente. Quem negligencia anal é incompetente sim!
- Você nunca me deu chance.
- Caio - fecha os olhos, dramática - eu tô lá toda molhada, pensando no beijo grego, enquanto você ainda tá na mordidinha na orelha. Tem que se ligar!
- Beijo grego?
- Olha, vai buscar conhecimento e não me amola mais.
- Então é assim? Vamos generalizar os costumes sexuais da humanidade. É a ditadura do cu!
- Isso aí! Geral cultua o cu. 
- Era só me dizer que gostava.
- Cadê feeling, querido? - levanta-se e abre a porta do quarto.
- Vai aonde?
- Duda! - grita para a irmã.
- Quié? - grita de volta a irmã, de algum ponto da casa.
- Gosta de dar o cu? 
- Claro, por quê? 
- Pergunta pra Clarinha aí.
- Perguntar o quê?
- Se ela também curte dar o cu.
- A Clarinha tem dezesseis anos - susurra Caio, quase tendo um derrame.
- Pergunta aí, Duda!
- Falou que não gosta. Ama!

As irmãs riem juntas. Enrolado no edredom, encolhido na cama, sentindo os pilares de sua masculinidade rachando, Caio enxerga algo de diabólico na cena toda.

- Agora vamos perguntar pra mamãe - provoca Bel.
- Ok, chegamos ao limite - o rapaz começa a se vestir apressadamente.
- Se liga na rima: cu não é areia movediça, não prende ninguém. Caio, você tá livre, e eu também.
- Você sempre foi boa de improviso.
- Já você, nem tanto.
- Não queria mesmo voltar?
- Você é complicado demais. Precisa superar essa repulsa anal.
- Vamos conversar direito?
- Sonha - coloca a blusa e sai do quarto.

Caio desce as escadas. Detém-se ao ver mãe e filhas tomando café da manhã na mesa da sala. Parecem nem notá-lo. Ele se esgueira até a porta da rua.

- Ei, Caio! Toma café? - oferece a mãe.
- Obrigado, Dona Vitória! Tenho que ir - destranca a porta - Não precisa se levantar.
- Tchau, meu filho. Espero que você supere.
- Eu não tenho nenhuma repulsa anal pra superar, Dona Vitória.
- Supere o fim do namoro, Caio - corrige a mãe.


Caio bate a porta e Dona Vitória fica sem entender as gargalhadas na mesa.