sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O canto da anunciação


- Tá resmungando o que aí?
- Não sabia que era proibido cantar na agência.
- Gus, preciso te contar.
- Uhm? - tira o fone dos ouvidos.
- Acho que sei quem anda me ligando.
- Quem o quê?
- Não te contei?
- Não, mas vai contar.
- Tem uns 4 dias que meu celular toca na madruga, aí atendo e ninguém fala nada – faz uma pausa dramática - Só escuto uma música da Edith Piaf ao fundo. E toca sem parar, até eu desligar. Depois perco o sono.
- Edite? É sertanejo?
- Não, aquela cantora francesa. A que canta com um ranho na garganta.
- Isso que dá fumar.
- A música é até bonita, mas às 3 da manhã, vinda do celular de um psicopata, dá um cagaço.
- E você não liga de volta?
- Número privado.
- Pode ser uma menina tirando com a sua cara.
– Acho que é coisa do Edu.
- Quem?
- O cara do financeiro.
- O gay ou o hetero?
- Ele não é assumido.
- Por que seria ele?
- Lembra daquele dia no bar do bigode? Ele ficou falando da paixão pela Edith Piaf, me alugou um tempão.
- Você dá corda.
- No dia seguinte começaram as chamadas.
- Ele viu alguma coisa em você e agora quer te tirar do armário.
- Não fode.
- Ué, vocês vivem trocando referências musicais, falando de autores, agora ele te quer.
- Mesmo se fosse, por que esse filho da puta faria algo tão freak?
- Ah, então o problema é a abordagem? Mateus, Mateus, você tá se entregando.
- Não muda o foco da conversa.
- Lá em Jandira existe uma fábula famosa. Já te contei?
- Não, mas vai contar.
- Dizem que quando o indivíduo anda indeciso sobre a sexualidade, a Mãe Natureza envia o Passarinho da Anunciação pra acabar com a dúvida.
- Como é que é?
- É um pássaro que canta bem de manhãzinha, um canto chiliquento, meio adocicado, e só o sujeito em dúvida escuta.
- Então é assim que o povo da sua terra se assume?
- É.
- E como é o canto?
- Não sei se vou saber reproduzir.
- Pelo visto você não escutou seu passarinho com atenção.
- Escutei sim, mas não foi de manhã, e nem em jejum, que é o momento da anunciação.
- Gustavo, faz um favor: cala a boca até o fim do dia.
- Mateus, o seu canto da anunciação é em francês. Pelo jeito você será uma gay sofisticadíssima.
- Vai trabalhar, vai.
- Então deixa eu ouvir meu sertanejo, que aliás é em bom português - recoloca o fone nos ouvidos.

Mateus vai até a copa pegar um café. Enche o copo de plástico e cantarola baixinho:

- Non... je ne regrette rien. C'est payé, balayé, oublié, je me fous du passé.

Ao perceber outra presença, interrompe o canto e pigarreia. Mas para sua surpresa, a música continua em outra voz, na de Edu:

- Avec mes souvenirs. J'ai allumé le feu, Mes chagrins, mes plaisirs, je n'ai plus besoin d'eux!

Mateus encara a figura risonha e cúmplice do contador. Faz uma mesura educada, porém impessoal, antes de se retirar. De volta à sua cadeira, ameaça abordar Gustavo novamente, no entanto nada diz.

- Mateus, se você visse a sua cara.
- O que tem?
- Igual à dos rapazes indecisos de Jandira.
- Controla suas fantasias aí.

À noite, Mateus aguarda ansioso pela ligação que não vem. A insônia se mantém nos dias posteriores.



terça-feira, 12 de novembro de 2013

Delírio de Cotard



Manhã chuvosa. Basileu acorda com Manu a encará-lo, sentada na cama. Depois do susto, vem o mau humor:

- Que foi, Manu? Parece que viu fantasma.
- Depende do ponto de vista.
- Dá um tempo.
- Queria me desculpar pelo mau cheiro.
- Que cheiro?
- De decomposição. Não consigo evitar, meu amor.

Basileu consulta o relógio: 6:50.

- Ainda faltam 40 minutos pro despertador tocar. Odeio acordar antes da hora – levanta-se à procura dos chinelos, que lhe fogem dos pés.
- Eu gostaria que você fosse mais positivo daqui pra frente.
- Você me acorda mais cedo do que devia em uma segunda-feira e pede pra eu ficar contente?
- Eu não te acordei, só enviei um estímulo telepático e você plim, despertou. Temos um elo, meu querido. Isso é maravilhoso.

O marido observa a esposa, incrédulo. Alivia-se por não possuir temperamento violento.

- Você não pode ser normal nem quando acorda?
- Baby, não sou mais como você. Eu tô morta.
- Então não acordasse tão cedo. Pode fazer o café, pelo menos?
- Você não entendeu. Eu morri. Fiz a passagem, mas continuo aqui, encarnada.

Basileu suspira. Os últimos indícios de enlouquecimento da esposa não lhe provocavam mais tristeza, apenas desânimo. Um surto pela manhã, após uma tranquila noite na casa de amigos, interrompia o progresso recente, reflete cheio de pessimismo.

- Você comeu empadinhas demais ontem. Só pode ser.
- Meu cheiro não tá incomodando mesmo?
- Não, não está. Fica quietinha aí que eu mesmo faço o café.
- Então por que o Argos não chega nem perto? – aponta para o cachorro, imóvel na porta do quarto.
- Esquece o Argos. Eu dou a comida dele.

Retorna ao perceber que o celular vibra sobre o criado mudo. Manu continua na mesma posição, olhos brilhantes e curiosos, fitando o marido como se ele fosse um animal exótico.

- Amor, e agora? Continua me vendo?
- Shhh... É do trabalho, deixa eu atender.

Basileu se atrapalha e acaba recusando a chamada.

- Merda, Manu, para de falar coisa sem sentido. Isso me perturba.
- Não se perturbe, meu querido. Eu explico.

Mesmo evitando incentivar a loucura da mulher, Basileu dobra-se diante da comovente expectativa nos olhos dela.

- Fala, Manu.
- Simples. Ou eu sou imortal ou você é médium. Seja o que for, é uma bênção. Sinta-se grato.
- Tá bom, tá bom... vem Argos, vamos fazer o café da mamãe.

Ainda nas escadas, Basileu liga para o psiquiatra da esposa. Não atende. Cedo demais, pensa. Uma segunda chamada interfere. De novo vem do escritório.

- Oi, Getúlio. Bom dia... é, desculpa. Tô tendo problemas com a Manu... não, nada grave. Oi? Vou, claro... porra, mas a reunião é às nove... relaxa, relaxa. Até mais... ah, Getúlio... não comenta nada sobre a Manu. Abraço, velho!

Basileu coloca água em uma chaleira. Disperso, esquece de acender o fogão. Tenta ligar novamente para o psiquiatra, insiste, nada. Pelo tablet, abre uma pasta secreta onde guarda artigos sobre síndromes e males que já acometeram a esposa: personalidades múltiplas, bipolaridade, estresse pós-traumático, amnésia dissociativa, fuga psicogênica e... nada parecido com o sintoma atual. O psiquiatra atende com voz sonolenta. Após breve e atabalhoada explanação do caso, o doutor levanta uma hipótese.

- Delírio de que? Cotard? – aflige-se Basileu - Que diabo é isso?

A hipótese do psiquiatra não o convence de cara.

- Tem certeza? E a esquizofrenia tá ligada a isso? Tá, entendi... e como trata? Levo ela aí?

Finalmente Basileu percebe que o fogão estava apagado. Acende prontamente.

- Não, não deixei sozinha. Tá na cama. Calma! Nervoso aqui já basta eu, doutor. Um minutinho... Manu! Manu, tudo bem aí?
- Sim, querido – responde do quarto a esposa.
- Tá tudo bem, doutor. Vou pedir dispensa do trabalho. Até daqui a pouco – finaliza a chamada, apesar da nítida vontade do psiquiatra em dialogar mais sobre o caso.

A água praticamente secara na chaleira. Alheio, Basileu permite-se responder alguns e-mails. A falta de banho e café o mantém em marcha lenta. E ainda tem que se justificar para Getúlio, recorda-se. Em outra aba, o dedicado marido busca no google informações sobre o tal Delírio de Cotard. Lá estava: a síndrome dos que juram estar mortos. O psiquiatra não estava mentindo, mas as ocorrências eram raríssimas, surpreende-se. Por que tinha que acontecer logo na sua casa, em uma segunda pela manhã? Desliga o fogo. Leva apenas água para a esposa. Tomarão café na padaria, decide. Celular toca. Getúlio mais uma vez. Porém, agora menos compreensivo.

- Foi mal! O que eu posso fazer, deixar a Manu sozinha? Porra, Getúlio, segura essa pra mim – passando em frente à janela da sala, Basileu escuta sirenes e observa a rua interditada, ambulância, viatura, caos – Não tenho opção se... desliga na cara da mãe, filho da puta!

Não encontra Manu no quarto. Porta do banheiro fechada. Deu duas batidas delicadas.

- Manu?! Meu bem, pedi folga. Vamos sair um pouco, vamos? Manu...?

Nada da esposa no banheiro, nem na casa inteira. Pela porta da rua não teria saído sem ser notada. Assustado, Basileu sua frio. Pensa em ir à portaria. Mais fácil interfonar, conclui.

- Oi, Jurandir. Manu passou pela portaria? Que foi, Jurandir?  – escuta mal o porteiro por causa do barulho de sirenes - Fala alto, caralho!

Basileu bate o interfone. Paralisado, observa a janela da sala, hesita em aproximar-se. Uma ideia sinistra o fez correr até o elevador, para então cruzar a portaria com agilidade inédita. Jurandir ainda tenta interpelá-lo com sua cantilena lamentosa:

- Seu Basileu, perdão! Já tem mais de uma hora e nada do senhor. Não avisei porque não sei dar notícia triste assim. Não fosse o senhor não interfonasse, iria ligar. Juro pelo que há de mais sagrado!

O marido se detém diante da maca onde jaz Manu. O ouvido só capta o barulho de chuva sobre a lona. Mais nada. Um carro espatifado denuncia onde caíra o corpo. Paramédicos e policiais agem em câmera lenta, extremamente cautelosos. Apenas um policial de gestos duros cumpre rotina sem pesar. Pelo rádio, passa dados sobre o ocorrido:

- Sim, rua Garcês, em frente ao número 193. Ocorrência registrada às seis e vinte da manhã. Óbito instantâneo. Isso, seis e vinte. Registrou?

Seis e vinte? Como poderia?, pergunta-se Basileu. Com uma esperança inintelígivel aos olhos dos presentes, dá as costas à tragédia e sobe 8 lances de escada até seu apartamento. Lá dentro, frustrado, nada encontra além de Argos, ansioso pela primeira refeição do dia.