quarta-feira, 24 de julho de 2013

Emotivo


Após agradável almoço aos pés da Serra da Cantareira, Palhoça circula pela zona norte de carro, desfrutando das companhias da esposa Eunice e de Babi, a filha adolescente.

- Palhoça, que caminho é esse?
- Vou passar pelo Mandaqui.
- Ai, pra quê Palhoça...?! – reclama a esposa, com o mau humor de quem suplica por uma cesta.
- Pra Babi conhecer o bairro onde eu nasci.
- Sua casa era por aqui, pai? – interessa-se a filha.
- Sim. Um casarão ali em cima, onde hoje funciona um asilo.
- É lá que vou te colocar em breve, Palhoça.
- Ai que maldade, mãe.
- Olha lá, Babi! – aponta para a última casa de uma rua sem saída - Minha janela era aquela da direita.
- Nossa, que enorme!
- Era ainda maior. Parece que reduziram o quintal da frente.

Palhoça escancara o saudosismo no olhar, mas Eunice corta a onda, sem cerimônia.

- Pronto, já viram. Podemos voltar agora?

O pai manobra o carro sem pressa, desce até a rotatória e, ao invés de seguir pela avenida, entra por uma rua estreita.

- Palhoça, por aí não... ai, desisto.
- O que houve mãe?

Eunice apenas bufa. Do banco de trás, a filha tenta entender o estado zumbificado de Palhoça.

- Pai?
- Agora explica pra ela, Palhoça. Por que você quis passar por aqui? – desafia Eunice, magoada.
- Pai, você tá chorando. Mãe o que aconteceu?
- É sempre a mesma coisa quando ele passa nesta rua. E eu tenho que aguentar isso engasgada.

Palhoça enxuga as lágrimas, que descem em cascata até o pescoço.

- Não é nada, minha filha. Só lembranças.
- Lembrança de uma suburbana que te chutou há mais de 30 anos. Esclarece pra sua filha!
- Me deixa, Eunice.
- Para, mãe. Papai é emotivo, você sabe.
- Emotivo nada! Ele ainda gosta dessa mulher.

Palhoça chora sem aparentar dor aguda. Digno e sereno como uma Pietá.

- Filha... papai tem recordações de uma moça, que foi importante pra ele.
- Quem era?
- Cidinha é o nome da bisca – intromete-se Eunice - Aposto que ele já a procurou.
- Mãe, o papai não faria isso. Todo mundo tem um amor mal resolvido na vida.
- Olha aí, falou a voz da experiência – ironiza a mãe.

O carro para no farol. O pranto de Palhoça mantém-se imune ao clima belicoso instaurado pela esposa. Por motivos distintos, torna-se um martírio para toda a família trafegar por aquela rua.

- Palhoça, me promete que essa é a última vez que passamos por aqui. Maldita rua comprida!
- Pai, você faz o que quiser.
- Não faz não! Virou zona agora? – berra a esposa, tirando Palhoça do transe.
- Mais respeito, Eunice – o patriarca tenta, inutilmente, impor alguma autoridade.
- É você quem tá me desrespeitando! Bata na minha cara, mas não me agrida dessa maneira – descontrola-se a esposa, também à beira do pranto.
- Ai, cala a boca, mãe!

Colérica, Eunice fulmina a filha no banco de trás:

- Pela última vez: ninguém te chamou na conversa!
- O seu coração é de pedra.
- Jura?

O tom irônico da mãe faz Babi recuar.

- Quer dizer que eu sou uma mãe ruim? Puxa, logo eu, que acoberto todas as suas confusões.
- Não tem confusão nenhuma.
- Não? Posso contar pro seu pai sobre a sua cirurgia, que ele pagou feito um idiota, pensando que era um tratamento de canal?
- Para, mãe.
- Palhoça, você já ouviu falar em labioplastia?

O pai mantém os olhos lacrimejantes na pista, mas franze a testa, intrigado com a pergunta.

- Não se assuste. Sua filha só quis modificar um probleminha visual que ela tinha entre as pernas. Agora não vai mais assustar os rapazinhos – diverte-se a vingativa Eunice.

Furiosa, Babi ameaça atirar o iPhone na cabeça da mãe.

- Meu Deus! Que merda de conversa é essa? – Palhoça encara as duas, enojado.
- Palhoça, sua filha levantou a mão pra mim! Você viu isso?
- Que cirurgia foi essa, Babi? Agora, fala!
- Pai, olha pra pista.

A celeuma em torno dos grandes lábios da filha adolescente impede Palhoça de enxergar o caminhão que cruza a avenida à frente. O choque arrasta o carro da família por alguns metros.

***

Dois anos após ter a família mutilada para sempre, Babi circula pelo Mandaqui, obcecada pelas lembranças do pai. Passando em frente ao restaurante Cabaça de Mel, depara-se com duas animadas senhoras despedindo-se. Sem querer ela escuta o final do diálogo:

- Não esquece de avisar à Dulce. Espero vocês mais tarde.
- Sem falta, Cidinha.

Ao ouvir a breve conversa, Babi dá meia-volta, abandona a timidez habitual e aborda a senhora que deixa o restaurante.

- Com licença, seu nome é Cidinha?
- Sim. E você quem é, minha linda?
- Bárbara. Talvez você conheça meu pai, o Palhoça.
- Palhoça...
- Raimundo Palhoça. Ele morou aqui no bairro quando era bem novo.
- Claro, lembro! Foi meu namorado na juventude. Como vai o seu pai?

Com as costas da mão, Babi desfere tapa violento no rosto de Cidinha, que cambaleia. O segundo tapa faz Cidinha cair sentada na calçada, com uma flor de sangue na ponta do nariz, e ali ficar até ser socorrida pela amiga. Babi segue andando sem olhar para trás. Não pretendia retornar ao bairro.


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