quarta-feira, 5 de junho de 2013

Maio de 68


Desacordado após uma explosão no restaurante universitário, Damásio foi levado às pressas ao hospital, com suspeita de traumatismo craniano. Dois dias depois, enfim recuperado, recebeu a primeira visita: Patrick, amigo do movimento estudantil, de temperamento mais leve e ponderado, um tanto debochado às vezes. Damásio não compartilhava o mesmo humor, mas ficou animado ao vê-lo.

- Patrick, meu amigo! Que confusão foi aquela?!
- Relaxa. Uns dias aqui vão te acalmar um pouco, vão até fazer bem.
- Diz aí: quantos feridos?
- Deixe-me ver... mais grave só você. Sua posição geográfica não favorecia muito: perto da cozinha.
- E a Rosa? A explosão foi na hora em que eu conseguia derrubar a barricada que existe entre eu e ela. Se não sonhei, lembro até de um sorriso.
- Ela tá inteira. Só queimaduras leves. Quanto à barricada, não sei se caiu. Ela não comentou nada comigo.

De súbito, o ar apaixonado de Damásio dá vez à expressão vivaz de costume:

- Dessa vez eles se ferraram! Isso vai dar repercussão. – esfrega as mãos o enfermo.
- É verdade! Reparou como andava ruim a comida do RU? Vamos nos organizar pra dar um basta nessa vergonha. Se bem que a explosão já interditou o lugar.
- Patrick, isso é frivolidade! O que aconteceu ali tem um significado maior.
- Frivolidade? Os companheiros merecem comer tão mal?
- Tô dizendo que foi um atentado à minha vida.
- Ah, não se dê tanta importância. Foi um acidente.
- Acidente? Deixa de ingenuidade. Hoje eu sou um líder, o que incomoda muita gente da linha dura.
- Mas o que isso tem a ver...?
- Patrick, o problema não era o purê de batata, e sim nossas atividades. Os explosivos foram plantados no RU por algum infiltrado.
- Foi uma panela de pressão.
- Sim, vivemos em uma panela de pressão.
- Damásio, você tá equivocado.
- Equivocado? Viu o estrago que os estilhaços fizeram em mim?
- Estilhaços?
- Sim, quer ver minhas costas?
- Feijões.
- Oi?
- Feijões não muito bem cozidos. Foi o que atingiu suas costas.
- Para de brincadeira.
- Te juro.
- O ambiente anda tumultuado demais pra você reduzir tudo a...
- Feijões. Uma panela explodiu e o conteúdo atingiu em cheio as suas costas. Na queda você bateu com a cabeça.
- Mas... como assim? Que coisa mais patética!

Percebendo o desapontamento do amigo, Patrick tenta reanimá-lo:

- Mas veja bem, era um cozinha industrial e não era qualquer panela. Nela deviam caber uns 10 litros ou mais de feijão, meu camarada. Uma senhora panela, eu diria!
- E a Rosa, me deixou lá?
- Teve tumulto, todo mundo saiu correndo. Não a vejo desde o dia fatídico.
- Ela não veio aqui enquanto estive apagado?
- Até onde sei, sou sua primeira visita.
- Obrigado pela consideração.
- Cá entre nós, não vai ser com uma rajada de vapor que você vai derrubar a resistência dela.

Patrick nota que o pensamento de Damásio desviara-se da luta estudantil para se concentrar apenas na amiga. Ainda assim, destila o habitual deboche.

- Lembre-se que Trótski levou uma picaretada, cambaleou, mas acabou sucumbindo. Você não! Continua firme na luta, mesmo depois daquela rajada de feijões semi-cozido e efervescentes. - consola Patrick, sem conseguir disfarçar o divertimento íntimo.
- Patrick...
- Fala, meu comandante.
- Some daqui.


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