sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O canto da anunciação


- Tá resmungando o que aí?
- Não sabia que era proibido cantar na agência.
- Gus, preciso te contar.
- Uhm? - tira o fone dos ouvidos.
- Acho que sei quem anda me ligando.
- Quem o quê?
- Não te contei?
- Não, mas vai contar.
- Tem uns 4 dias que meu celular toca na madruga, aí atendo e ninguém fala nada – faz uma pausa dramática - Só escuto uma música da Edith Piaf ao fundo. E toca sem parar, até eu desligar. Depois perco o sono.
- Edite? É sertanejo?
- Não, aquela cantora francesa. A que canta com um ranho na garganta.
- Isso que dá fumar.
- A música é até bonita, mas às 3 da manhã, vinda do celular de um psicopata, dá um cagaço.
- E você não liga de volta?
- Número privado.
- Pode ser uma menina tirando com a sua cara.
– Acho que é coisa do Edu.
- Quem?
- O cara do financeiro.
- O gay ou o hetero?
- Ele não é assumido.
- Por que seria ele?
- Lembra daquele dia no bar do bigode? Ele ficou falando da paixão pela Edith Piaf, me alugou um tempão.
- Você dá corda.
- No dia seguinte começaram as chamadas.
- Ele viu alguma coisa em você e agora quer te tirar do armário.
- Não fode.
- Ué, vocês vivem trocando referências musicais, falando de autores, agora ele te quer.
- Mesmo se fosse, por que esse filho da puta faria algo tão freak?
- Ah, então o problema é a abordagem? Mateus, Mateus, você tá se entregando.
- Não muda o foco da conversa.
- Lá em Jandira existe uma fábula famosa. Já te contei?
- Não, mas vai contar.
- Dizem que quando o indivíduo anda indeciso sobre a sexualidade, a Mãe Natureza envia o Passarinho da Anunciação pra acabar com a dúvida.
- Como é que é?
- É um pássaro que canta bem de manhãzinha, um canto chiliquento, meio adocicado, e só o sujeito em dúvida escuta.
- Então é assim que o povo da sua terra se assume?
- É.
- E como é o canto?
- Não sei se vou saber reproduzir.
- Pelo visto você não escutou seu passarinho com atenção.
- Escutei sim, mas não foi de manhã, e nem em jejum, que é o momento da anunciação.
- Gustavo, faz um favor: cala a boca até o fim do dia.
- Mateus, o seu canto da anunciação é em francês. Pelo jeito você será uma gay sofisticadíssima.
- Vai trabalhar, vai.
- Então deixa eu ouvir meu sertanejo, que aliás é em bom português - recoloca o fone nos ouvidos.

Mateus vai até a copa pegar um café. Enche o copo de plástico e cantarola baixinho:

- Non... je ne regrette rien. C'est payé, balayé, oublié, je me fous du passé.

Ao perceber outra presença, interrompe o canto e pigarreia. Mas para sua surpresa, a música continua em outra voz, na de Edu:

- Avec mes souvenirs. J'ai allumé le feu, Mes chagrins, mes plaisirs, je n'ai plus besoin d'eux!

Mateus encara a figura risonha e cúmplice do contador. Faz uma mesura educada, porém impessoal, antes de se retirar. De volta à sua cadeira, ameaça abordar Gustavo novamente, no entanto nada diz.

- Mateus, se você visse a sua cara.
- O que tem?
- Igual à dos rapazes indecisos de Jandira.
- Controla suas fantasias aí.

À noite, Mateus aguarda ansioso pela ligação que não vem. A insônia se mantém nos dias posteriores.



terça-feira, 12 de novembro de 2013

Delírio de Cotard



Manhã chuvosa. Basileu acorda com Manu a encará-lo, sentada na cama. Depois do susto, vem o mau humor:

- Que foi, Manu? Parece que viu fantasma.
- Depende do ponto de vista.
- Dá um tempo.
- Queria me desculpar pelo mau cheiro.
- Que cheiro?
- De decomposição. Não consigo evitar, meu amor.

Basileu consulta o relógio: 6:50.

- Ainda faltam 40 minutos pro despertador tocar. Odeio acordar antes da hora – levanta-se à procura dos chinelos, que lhe fogem dos pés.
- Eu gostaria que você fosse mais positivo daqui pra frente.
- Você me acorda mais cedo do que devia em uma segunda-feira e pede pra eu ficar contente?
- Eu não te acordei, só enviei um estímulo telepático e você plim, despertou. Temos um elo, meu querido. Isso é maravilhoso.

O marido observa a esposa, incrédulo. Alivia-se por não possuir temperamento violento.

- Você não pode ser normal nem quando acorda?
- Baby, não sou mais como você. Eu tô morta.
- Então não acordasse tão cedo. Pode fazer o café, pelo menos?
- Você não entendeu. Eu morri. Fiz a passagem, mas continuo aqui, encarnada.

Basileu suspira. Os últimos indícios de enlouquecimento da esposa não lhe provocavam mais tristeza, apenas desânimo. Um surto pela manhã, após uma tranquila noite na casa de amigos, interrompia o progresso recente, reflete cheio de pessimismo.

- Você comeu empadinhas demais ontem. Só pode ser.
- Meu cheiro não tá incomodando mesmo?
- Não, não está. Fica quietinha aí que eu mesmo faço o café.
- Então por que o Argos não chega nem perto? – aponta para o cachorro, imóvel na porta do quarto.
- Esquece o Argos. Eu dou a comida dele.

Retorna ao perceber que o celular vibra sobre o criado mudo. Manu continua na mesma posição, olhos brilhantes e curiosos, fitando o marido como se ele fosse um animal exótico.

- Amor, e agora? Continua me vendo?
- Shhh... É do trabalho, deixa eu atender.

Basileu se atrapalha e acaba recusando a chamada.

- Merda, Manu, para de falar coisa sem sentido. Isso me perturba.
- Não se perturbe, meu querido. Eu explico.

Mesmo evitando incentivar a loucura da mulher, Basileu dobra-se diante da comovente expectativa nos olhos dela.

- Fala, Manu.
- Simples. Ou eu sou imortal ou você é médium. Seja o que for, é uma bênção. Sinta-se grato.
- Tá bom, tá bom... vem Argos, vamos fazer o café da mamãe.

Ainda nas escadas, Basileu liga para o psiquiatra da esposa. Não atende. Cedo demais, pensa. Uma segunda chamada interfere. De novo vem do escritório.

- Oi, Getúlio. Bom dia... é, desculpa. Tô tendo problemas com a Manu... não, nada grave. Oi? Vou, claro... porra, mas a reunião é às nove... relaxa, relaxa. Até mais... ah, Getúlio... não comenta nada sobre a Manu. Abraço, velho!

Basileu coloca água em uma chaleira. Disperso, esquece de acender o fogão. Tenta ligar novamente para o psiquiatra, insiste, nada. Pelo tablet, abre uma pasta secreta onde guarda artigos sobre síndromes e males que já acometeram a esposa: personalidades múltiplas, bipolaridade, estresse pós-traumático, amnésia dissociativa, fuga psicogênica e... nada parecido com o sintoma atual. O psiquiatra atende com voz sonolenta. Após breve e atabalhoada explanação do caso, o doutor levanta uma hipótese.

- Delírio de que? Cotard? – aflige-se Basileu - Que diabo é isso?

A hipótese do psiquiatra não o convence de cara.

- Tem certeza? E a esquizofrenia tá ligada a isso? Tá, entendi... e como trata? Levo ela aí?

Finalmente Basileu percebe que o fogão estava apagado. Acende prontamente.

- Não, não deixei sozinha. Tá na cama. Calma! Nervoso aqui já basta eu, doutor. Um minutinho... Manu! Manu, tudo bem aí?
- Sim, querido – responde do quarto a esposa.
- Tá tudo bem, doutor. Vou pedir dispensa do trabalho. Até daqui a pouco – finaliza a chamada, apesar da nítida vontade do psiquiatra em dialogar mais sobre o caso.

A água praticamente secara na chaleira. Alheio, Basileu permite-se responder alguns e-mails. A falta de banho e café o mantém em marcha lenta. E ainda tem que se justificar para Getúlio, recorda-se. Em outra aba, o dedicado marido busca no google informações sobre o tal Delírio de Cotard. Lá estava: a síndrome dos que juram estar mortos. O psiquiatra não estava mentindo, mas as ocorrências eram raríssimas, surpreende-se. Por que tinha que acontecer logo na sua casa, em uma segunda pela manhã? Desliga o fogo. Leva apenas água para a esposa. Tomarão café na padaria, decide. Celular toca. Getúlio mais uma vez. Porém, agora menos compreensivo.

- Foi mal! O que eu posso fazer, deixar a Manu sozinha? Porra, Getúlio, segura essa pra mim – passando em frente à janela da sala, Basileu escuta sirenes e observa a rua interditada, ambulância, viatura, caos – Não tenho opção se... desliga na cara da mãe, filho da puta!

Não encontra Manu no quarto. Porta do banheiro fechada. Deu duas batidas delicadas.

- Manu?! Meu bem, pedi folga. Vamos sair um pouco, vamos? Manu...?

Nada da esposa no banheiro, nem na casa inteira. Pela porta da rua não teria saído sem ser notada. Assustado, Basileu sua frio. Pensa em ir à portaria. Mais fácil interfonar, conclui.

- Oi, Jurandir. Manu passou pela portaria? Que foi, Jurandir?  – escuta mal o porteiro por causa do barulho de sirenes - Fala alto, caralho!

Basileu bate o interfone. Paralisado, observa a janela da sala, hesita em aproximar-se. Uma ideia sinistra o fez correr até o elevador, para então cruzar a portaria com agilidade inédita. Jurandir ainda tenta interpelá-lo com sua cantilena lamentosa:

- Seu Basileu, perdão! Já tem mais de uma hora e nada do senhor. Não avisei porque não sei dar notícia triste assim. Não fosse o senhor não interfonasse, iria ligar. Juro pelo que há de mais sagrado!

O marido se detém diante da maca onde jaz Manu. O ouvido só capta o barulho de chuva sobre a lona. Mais nada. Um carro espatifado denuncia onde caíra o corpo. Paramédicos e policiais agem em câmera lenta, extremamente cautelosos. Apenas um policial de gestos duros cumpre rotina sem pesar. Pelo rádio, passa dados sobre o ocorrido:

- Sim, rua Garcês, em frente ao número 193. Ocorrência registrada às seis e vinte da manhã. Óbito instantâneo. Isso, seis e vinte. Registrou?

Seis e vinte? Como poderia?, pergunta-se Basileu. Com uma esperança inintelígivel aos olhos dos presentes, dá as costas à tragédia e sobe 8 lances de escada até seu apartamento. Lá dentro, frustrado, nada encontra além de Argos, ansioso pela primeira refeição do dia.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Pergunte ao Obama



A pequenina Bel invade o quarto de Carlos chacoalhando colares, pulseiras, peitos e uma enorme bolsa.

- Porra, Cal! Te ligo, mando mensagem... e nada. Tá se escondendo?
- Já experimentou bater na porta?
- Rabugento! Quem tem razão para estar indignada sou eu.
- Desliguei o celular porque quero sossego.
- Posso imaginar o porquê de ter desligado. Eu devia sentir raiva de você, mas tenho mesmo é pena.
- Tá falando de quê?
- Não sabe mesmo? Peraí, deixa eu pegar o iPhone na bolsa.
- Ah, lá vem você também. Por que ninguém me deixa em paz?
- Ué, mas eu sou a principal interessada nas suas palhaçadas. E a que mais se envergonha também.

Bel saca o celular e vai direto à página de seu e-mail.

- Puta que pariu! Só enquanto eu vinha pra cá chegaram mais 2. O que tá acontecendo, afinal?
- Eu é que pergunto.
- Filho da puta! Você sabe muito bem. Ontem me mandaram prints de conversas suas, marcando encontros pelo face. E agora, pelo visto, vem mais sujeira.
- Quem mandou isso?
- Um fake qualquer que quer te foder comigo. E tá conseguindo!
- Eita, porra! Me hackearam, e isso é serio.
- Nossa, Carlos André! Agora chegou o seu histórico. Deus do céu!
- Passa pra cá. – avança Carlos sobre o iPhone.

Bel protege-se da investida com um olhar ameaçador. Depois continua a ler, enquanto o namorado se faz de ofendido:

- Ah, quer ler? Quer invadir minha privacidade? Que se foda!
- O que é ballbusting?
- Ahn...? Esquece essa merda.
- Esclarece pra mim porque eu fiquei curiosa.
- Ah, quem nunca clicou em um link sem querer, só por curiosidade?
- Mais de quarenta vezes? Olha, eu nem ligo se você tem tara por mulher que te chuta o saco, mas manter conversa com piranha e ainda marcar chopinho é demais. Tá infeliz comigo? Cai fora, meu!
- Bel, alguém tá orquestrando uma campanha contra mim. Isso é espionagem.
- Ah, me poupa! Pra que iriam te espionar?
- Pergunte ao Obama.
- Oi?
- Fui hackeado por causa do meu ativismo. A ideia deles é me expor ao ridículo.
- Você já é ridículo por si só. Não precisa de ninguém pra “orquestrar” isso.
- Bel, articulamos a maioria dos protestos. Esqueceu? Tem corporação puta com a gente, mídia descendo o pau e a CIA por dentro de tudo!
- Notei que invadiram sua conta, mas daí a acreditar que, em meio a centenas de milhares de militantes, o escolhido pela CIA seja você, é pedir pra me colocarem em uma camisa de força.
- Você é leitora da Veja. Vai sempre desqualificar nossa luta - estranha a letargia da namorada - Bel?
- Jesus Cristo! Eu ainda não tinha visto o facebook hoje.
- Eu queria te prevenir.
- Mais de 2 mil compartilhamentos. Quanta gente doente!
- A coisa perdeu o controle, mas eu posso explicar.
- Então explica isso.

Bel dá play em um vídeo e começa uma grotesca compilação de cenas, que mostram Carlos cumprindo um mesmo ritual sucessivas vezes, diante do vaso sanitário, em cujo interior está posicionada a câmera. Primeiro ele olha para a lente, diz o nome completo, a data da ação, a hora e o enigmático termo “Fecal Monitoring Project”. Aí vem a pior parte: Carlos vira a bunda desnuda, que avança em direção à tela. A massa fecal expelida é vista nos mínimos detalhes. O ânus está desfocado, mas o rosto de Carlos não, para azar do rapaz.

- Fecal Monitoring Project, Carlos André? - controla o riso Bel - Ainda bem que colocaram um blur no seu cu. Nem eu tinha te visto nesse ângulo.
- Tem um sentido nisso.
- Claro. Virar o meme mais escroto da história da internet.
- Bel, era pra ser sigiloso. Acha que eu faria se tivesse algum risco de vazar?
- E por que fez, porra? Por quê? – desespera-se Bel.
- Por causa da grana, pra me curar... – aflige-se Carlos - E também por ser uma boa ação.
- Boa ação? Quem te pagou pra fazer essa nojeira? Só pode ser algum site pornô.
- Não, Bel. O projeto é de um laboratório farmacêutico. Eles querem desenvolver um remédio para a síndrome do intestino irritável.
- Conta outra.
- Eu coleto material toda semana, mas também mando vídeos diários pra monitorarem os meus hábitos e a intensidade da evacuação. Enfim, minha vida intestinal.
- Você vendeu sua vida intestinal pra um laboratório. É isso?
- É... mais ou menos isso. Mas tem uma coisa boa além da grana.
- Aposto que sim.
- Se desenvolverem a cura, ganho medicamento pra vida toda. Aí acabou o desconforto – sorri amarelo, sem obter contrapartida alguma - Sabe o que é ter que correr pro banheiro em toda ocasião tensa?

Bel não se comove.

- Você foi feito de otário. Acha mesmo que iriam pedir vídeos das suas cagadas?
- Bel, eu li a metodologia.
- E cadê o dinheiro?
- Me deram uma parte. A pesquisa demora um tempo.
- Vai se foder! Alguém te deu um golpe pra poder colocar isso na internet. A mesma pessoa que anda te queimando comigo.

Suando pela testa, Carlos investiga os cantos do quarto, em uma afetada busca por câmeras escondidas.

- Isso é coisa de gente graúda, Bel.
- Duvido que algum outro militante esteja enfrentando isso. Só mesmo o senhor anti-tudo egocêntrico e imbecil!
- Você tá enganada. Teve uma militante nossa que já sofreu na mão deles.
- Não inventa.
- É sério. Uma mulher rica, importante e... bom, era mais um patrocínio, por se identificar com a nossa causa. Mesmo sem mostrar a cara, eles descobriram e foderam com ela.
- Imagino que você não vai contar quem é, não é mesmo?! Logo você, sempre tão discreto.
- É sigiloso, porra! Mas depois do incidente ela virou nome de lei e tudo. Achei que a perseguição fosse parar ali, mas aí vieram as manifestações e o resultado é esse que você tá vendo.
- Não tem mulher nenhuma. A CIA deve estar concentrada demais em monitorar suas tentativas de me chifrar e em saber a cor do seu cocô, claro – ironiza Bel.
- O nome Carolina Dieckman não te faz lembrar de algo? – desafia Carlos, comprovando que não é mesmo uma pessoa discreta.
- Como assim Carolina Dieckman? Você tá dizendo que...?
- Shhhh.

Bel gargalha até ficar roxa.

- Você julga as pessoas apenas pela imagem. – conclui Carlos com amargura.
- Ai, minha barriga. – tenta recompor-se Bel - A piada foi boa, mas não o suficiente pra eu te perdoar.
- Olha, eu não riria da Carol se fosse você.
- Carol?

Bel volta a gargalhar descontroladamente. Mas diante do ar impassível do namorado, a graça vai se esvaindo até ela se sentir um pouco desconcertada.

- Por que eu não riria da Carol? – desconfia Bel, ainda com lágrimas de divertimento nos olhos.
- Essa era a segunda coisa que eu tinha pra te dizer.
- Segunda coisa?

Carlos engole seco e dá as costas para a namorada.

- As minhas fotos! Carlos, elas estavam na sua máquina? Você não daria esse mole – Bel crava as unhas no braço do namorado - Olha pra mim, seu merda!

Batidas fracas na porta. Do outro lado, a avó convida:

- Meninos, o lanche tá na mesa. Fiz rocambole.
- Oba! To indo. – vibra o neto.
- Carlos, foda-se a merda do rocambole! Carlos, volta aqui!



quarta-feira, 24 de julho de 2013

Emotivo


Após agradável almoço aos pés da Serra da Cantareira, Palhoça circula pela zona norte de carro, desfrutando das companhias da esposa Eunice e de Babi, a filha adolescente.

- Palhoça, que caminho é esse?
- Vou passar pelo Mandaqui.
- Ai, pra quê Palhoça...?! – reclama a esposa, com o mau humor de quem suplica por uma cesta.
- Pra Babi conhecer o bairro onde eu nasci.
- Sua casa era por aqui, pai? – interessa-se a filha.
- Sim. Um casarão ali em cima, onde hoje funciona um asilo.
- É lá que vou te colocar em breve, Palhoça.
- Ai que maldade, mãe.
- Olha lá, Babi! – aponta para a última casa de uma rua sem saída - Minha janela era aquela da direita.
- Nossa, que enorme!
- Era ainda maior. Parece que reduziram o quintal da frente.

Palhoça escancara o saudosismo no olhar, mas Eunice corta a onda, sem cerimônia.

- Pronto, já viram. Podemos voltar agora?

O pai manobra o carro sem pressa, desce até a rotatória e, ao invés de seguir pela avenida, entra por uma rua estreita.

- Palhoça, por aí não... ai, desisto.
- O que houve mãe?

Eunice apenas bufa. Do banco de trás, a filha tenta entender o estado zumbificado de Palhoça.

- Pai?
- Agora explica pra ela, Palhoça. Por que você quis passar por aqui? – desafia Eunice, magoada.
- Pai, você tá chorando. Mãe o que aconteceu?
- É sempre a mesma coisa quando ele passa nesta rua. E eu tenho que aguentar isso engasgada.

Palhoça enxuga as lágrimas, que descem em cascata até o pescoço.

- Não é nada, minha filha. Só lembranças.
- Lembrança de uma suburbana que te chutou há mais de 30 anos. Esclarece pra sua filha!
- Me deixa, Eunice.
- Para, mãe. Papai é emotivo, você sabe.
- Emotivo nada! Ele ainda gosta dessa mulher.

Palhoça chora sem aparentar dor aguda. Digno e sereno como uma Pietá.

- Filha... papai tem recordações de uma moça, que foi importante pra ele.
- Quem era?
- Cidinha é o nome da bisca – intromete-se Eunice - Aposto que ele já a procurou.
- Mãe, o papai não faria isso. Todo mundo tem um amor mal resolvido na vida.
- Olha aí, falou a voz da experiência – ironiza a mãe.

O carro para no farol. O pranto de Palhoça mantém-se imune ao clima belicoso instaurado pela esposa. Por motivos distintos, torna-se um martírio para toda a família trafegar por aquela rua.

- Palhoça, me promete que essa é a última vez que passamos por aqui. Maldita rua comprida!
- Pai, você faz o que quiser.
- Não faz não! Virou zona agora? – berra a esposa, tirando Palhoça do transe.
- Mais respeito, Eunice – o patriarca tenta, inutilmente, impor alguma autoridade.
- É você quem tá me desrespeitando! Bata na minha cara, mas não me agrida dessa maneira – descontrola-se a esposa, também à beira do pranto.
- Ai, cala a boca, mãe!

Colérica, Eunice fulmina a filha no banco de trás:

- Pela última vez: ninguém te chamou na conversa!
- O seu coração é de pedra.
- Jura?

O tom irônico da mãe faz Babi recuar.

- Quer dizer que eu sou uma mãe ruim? Puxa, logo eu, que acoberto todas as suas confusões.
- Não tem confusão nenhuma.
- Não? Posso contar pro seu pai sobre a sua cirurgia, que ele pagou feito um idiota, pensando que era um tratamento de canal?
- Para, mãe.
- Palhoça, você já ouviu falar em labioplastia?

O pai mantém os olhos lacrimejantes na pista, mas franze a testa, intrigado com a pergunta.

- Não se assuste. Sua filha só quis modificar um probleminha visual que ela tinha entre as pernas. Agora não vai mais assustar os rapazinhos – diverte-se a vingativa Eunice.

Furiosa, Babi ameaça atirar o iPhone na cabeça da mãe.

- Meu Deus! Que merda de conversa é essa? – Palhoça encara as duas, enojado.
- Palhoça, sua filha levantou a mão pra mim! Você viu isso?
- Que cirurgia foi essa, Babi? Agora, fala!
- Pai, olha pra pista.

A celeuma em torno dos grandes lábios da filha adolescente impede Palhoça de enxergar o caminhão que cruza a avenida à frente. O choque arrasta o carro da família por alguns metros.

***

Dois anos após ter a família mutilada para sempre, Babi circula pelo Mandaqui, obcecada pelas lembranças do pai. Passando em frente ao restaurante Cabaça de Mel, depara-se com duas animadas senhoras despedindo-se. Sem querer ela escuta o final do diálogo:

- Não esquece de avisar à Dulce. Espero vocês mais tarde.
- Sem falta, Cidinha.

Ao ouvir a breve conversa, Babi dá meia-volta, abandona a timidez habitual e aborda a senhora que deixa o restaurante.

- Com licença, seu nome é Cidinha?
- Sim. E você quem é, minha linda?
- Bárbara. Talvez você conheça meu pai, o Palhoça.
- Palhoça...
- Raimundo Palhoça. Ele morou aqui no bairro quando era bem novo.
- Claro, lembro! Foi meu namorado na juventude. Como vai o seu pai?

Com as costas da mão, Babi desfere tapa violento no rosto de Cidinha, que cambaleia. O segundo tapa faz Cidinha cair sentada na calçada, com uma flor de sangue na ponta do nariz, e ali ficar até ser socorrida pela amiga. Babi segue andando sem olhar para trás. Não pretendia retornar ao bairro.


quarta-feira, 5 de junho de 2013

Maio de 68


Desacordado após uma explosão no restaurante universitário, Damásio foi levado às pressas ao hospital, com suspeita de traumatismo craniano. Dois dias depois, enfim recuperado, recebeu a primeira visita: Patrick, amigo do movimento estudantil, de temperamento mais leve e ponderado, um tanto debochado às vezes. Damásio não compartilhava o mesmo humor, mas ficou animado ao vê-lo.

- Patrick, meu amigo! Que confusão foi aquela?!
- Relaxa. Uns dias aqui vão te acalmar um pouco, vão até fazer bem.
- Diz aí: quantos feridos?
- Deixe-me ver... mais grave só você. Sua posição geográfica não favorecia muito: perto da cozinha.
- E a Rosa? A explosão foi na hora em que eu conseguia derrubar a barricada que existe entre eu e ela. Se não sonhei, lembro até de um sorriso.
- Ela tá inteira. Só queimaduras leves. Quanto à barricada, não sei se caiu. Ela não comentou nada comigo.

De súbito, o ar apaixonado de Damásio dá vez à expressão vivaz de costume:

- Dessa vez eles se ferraram! Isso vai dar repercussão. – esfrega as mãos o enfermo.
- É verdade! Reparou como andava ruim a comida do RU? Vamos nos organizar pra dar um basta nessa vergonha. Se bem que a explosão já interditou o lugar.
- Patrick, isso é frivolidade! O que aconteceu ali tem um significado maior.
- Frivolidade? Os companheiros merecem comer tão mal?
- Tô dizendo que foi um atentado à minha vida.
- Ah, não se dê tanta importância. Foi um acidente.
- Acidente? Deixa de ingenuidade. Hoje eu sou um líder, o que incomoda muita gente da linha dura.
- Mas o que isso tem a ver...?
- Patrick, o problema não era o purê de batata, e sim nossas atividades. Os explosivos foram plantados no RU por algum infiltrado.
- Foi uma panela de pressão.
- Sim, vivemos em uma panela de pressão.
- Damásio, você tá equivocado.
- Equivocado? Viu o estrago que os estilhaços fizeram em mim?
- Estilhaços?
- Sim, quer ver minhas costas?
- Feijões.
- Oi?
- Feijões não muito bem cozidos. Foi o que atingiu suas costas.
- Para de brincadeira.
- Te juro.
- O ambiente anda tumultuado demais pra você reduzir tudo a...
- Feijões. Uma panela explodiu e o conteúdo atingiu em cheio as suas costas. Na queda você bateu com a cabeça.
- Mas... como assim? Que coisa mais patética!

Percebendo o desapontamento do amigo, Patrick tenta reanimá-lo:

- Mas veja bem, era um cozinha industrial e não era qualquer panela. Nela deviam caber uns 10 litros ou mais de feijão, meu camarada. Uma senhora panela, eu diria!
- E a Rosa, me deixou lá?
- Teve tumulto, todo mundo saiu correndo. Não a vejo desde o dia fatídico.
- Ela não veio aqui enquanto estive apagado?
- Até onde sei, sou sua primeira visita.
- Obrigado pela consideração.
- Cá entre nós, não vai ser com uma rajada de vapor que você vai derrubar a resistência dela.

Patrick nota que o pensamento de Damásio desviara-se da luta estudantil para se concentrar apenas na amiga. Ainda assim, destila o habitual deboche.

- Lembre-se que Trótski levou uma picaretada, cambaleou, mas acabou sucumbindo. Você não! Continua firme na luta, mesmo depois daquela rajada de feijões semi-cozido e efervescentes. - consola Patrick, sem conseguir disfarçar o divertimento íntimo.
- Patrick...
- Fala, meu comandante.
- Some daqui.


segunda-feira, 20 de maio de 2013

Mediocridade calculada


A supervisora de RH recebe Sérgio com um sorriso plastificado.

- Me chamou, Samara?
- Aham, vamos até a sala de reunião pra gente bater um papo.

Sergio sente-se apreensivo.

- Quer que eu peça um café, Sergio?
- Não. Meu tempo tá curto hoje, desculpa.
- Bom, como você deve imaginar, o Thompson achou grave o que ocorreu sábado, quando você abandonou as crianças na fábrica de pretzels. Não era sua obrigação ir, mas como quis ser voluntário, tinha que ter ficado até o fim da visita.
- Samara, por que o próprio Thompson não vem falar comigo? Deixei recado no celular dele no mesmo dia.
- Recebemos reclamações de pais de crianças do Grupo Escolar Sementes do Amanhecer. O Thompson ficou tão chateado que entregou o caso ao RH.
- Peraí, vão me demitir porque não me saí bem como monitor em uma excursão à fábrica de pretzels? Duvido que o Thompson esteja de acordo.
- Calma, vou chegar ao ponto: desde o ano passado, nosso grupo tem sido elogiado por realizar eventos com crianças em condições de vulnerabilidade social e...
- Eu sei dessa conversa toda, menina - interrompe Sergio - Já te disse que o meu tempo tá apertado.
- O Thompson vai entender se você perder uns minutos aqui – rebate Samara  – Como dizia, após o seu abandono, as crianças quase perderam a melhor parte da visita: a degustação de pretzels.
- Quase? Ah, que bom que deu tudo certo.
- Tivemos que acionar outro funcionário com urgência. Algo difícil em um sábado – Samara ignora o sorriso debochado de Sergio e vai em frente – Depois de muito insistir, conseguimos a colaboração do Dimas do TI.
- O dos sete filhos adotivos?
- É. E ele só aceitou porque autorizamos os filhos a irem também. Isso gerou um gasto imprevisto para nós.
- Como assim?
- Os pretzels eram contados.
- Ah.
- Sergio, há tempos o Thompson lhe prepara para um cargo mais elevado, mas observa sua auto sabotagem como um caso de mediocridade calculada, pois você alterna momentos de brilhantismo e desleixo.
- Desleixo? Peraí, agora deixa eu falar! Você sabe o que aconteceu naquele dia? Sabe? A tia que me criou desde os oito anos de idade teve um derrame.

Samara não se impressiona.

- Desleixo sim, Sergio. Logo após ouvir a mensagem, o Thompson ligou para o seu irmão, que desmentiu sua história. Não preciso mencionar o tamanho da decepção, né?!

Sergio não se abala.

- E por não ter dito o motivo real, vocês acham que eu abandonei o posto por desleixo?
- Não seria a primeira vez que o senhor comete error grosseiros quando está prestes a...
- Opa, calma aí! – a veia do pescoço salta - Eu me preparei! Sei tudo sobre essa merda de pretzel, viu?!
- A questão é mais ampla.

Sergio levanta a voz:

- Sabia, por exemplo, que essa porcaria de bolo em formato de laço surgiu nas festinhas da primavera celta? Aposto que não!
- Interessante – responde Samara, inabalável, encarando o papel sobre a mesa.
- E que os monges beneditinos da Renânia e da Borgonha davam como prêmio pra crianças que faziam a lição de casa? - soca a mesa - Também aposto que não!
- Não sabia.
- E tem mais!

Samara esfria a empolgação de Sergio:

- Nada disso importa agora.
- Vou ser demitido?
- Não é nossa política demitir pessoas. O Thompson adota uma linha de gestão mais humana. Por isso, me encarregou de verificar se é ou não um caso de mediocridade.
- Que porra é essa, afinal?
- Potencial desperdiçado por covardia. Alguns chamam também de nanismo motivacional. O Thompson acabou de chegar de um simpósio na Suécia, onde se aprofundou sobre isso esses. Vamos ao questionário?
- Esquece! Não vou ser cobaia das esquisitices do Thompson.

Samara respira fundo e se faz de condescendente:

- Não vai doer – Sergio ameaça retrucar, mas Samara é mais rápida – De um a dez, como foi seu desempenho durante o ensino médio e o fundamental?

Sergio suspira.

- Sei lá. Seis ou sete.

Samara parece gostar da resposta.

- Sergio, você serviu ao Exército, correto? – Sergio confirma com a cabeça – Enquanto estava lá, desejou subir de patente?
- De jeito nenhum. Pelo visto isso não é um questionário padrão, né?!
- Trabalho com investigação.
- Isso se chama espionagem, Samara.
- Você é casado há 5 anos com uma mulher saudável – Samara recorre às anotações – Os dois já passaram dos trinta e cinco, porém não tiveram filhos.
- E daí? O que tem a ver?
- Por que não quis dar esse passo?
- Eu sei lá! Porque não é a hora.
- Medo de consolidar um estado pleno de felicidade?
- Que ideia!
- O senhor teme a paternidade?
- Olha, vamos parar por aqui.

Percebendo o ponto fraco, Samara insiste, agora com doçura na voz.

- Sua mulher tem alguma coisa a ver com o que anda se passando?

Sergio abaixa a cabeça pensativo.

- Pode se abrir, Sergio.
- Samara, eu ando tenso... com medo. Gostaria de voltar pra minha baia.
- Medo de quê?

Sergio esconde o rosto, segurando o pranto. A supervisora de RH tranquiliza-se ao perceber que ninguém os observa através das paredes de vidro.

- Eu desconfio que o meu casamento já era. Mas eu não queria... - Sergio fica vermelho e não consegue mais reprimir as lágrimas.
- O que houve no sábado?
- Me ligaram, disseram que ela tava na praça de alimentação do shopping. Como é que pode, meu Deus?!
- O que ela fazia lá?
- Me enganava! – grita Sergio, estremecendo Samara.

Samara junta seus papéis, enquanto Sergio permanece absorto. Ela se levanta com delicadeza e coloca a mão sobre o ombro dele.

- Sergio, entendo o seu drama, mas foge às minhas atribuições. Vou comunicar o que se passa ao Conselho e aos heads de cada setor. Com todos a par do problema, ficará mais fácil lhe dar apoio psicológico.

Samara deixa a sala sem fazer barulho. Imerso em sua dor, Sergio mantém-se cabisbaixo por alguns instantes. Ao recuperar a lucidez, levanta-se assustado e sai correndo desesperado atrás da supervisora de RH.


terça-feira, 8 de janeiro de 2013

A pergunta primordial



Valéria lava pratos na cozinha. Ao escutar um tranco na porta da rua, fecha a torneira rápido. Seguem-se barulhos de chaves caindo e de passos arrastados pela sala. Imagina ser o marido chegando bêbado, mas a surpresa é ainda mais desagradável.

- Ari? Nossa, que curativos são esses? – desespera-se ao ver o homem escorado pelo porteiro Chico.
- Me coloca aqui, Chico... isso, no sofá. Obrigado.
- Responde, Ari!
- Calma, Val. Deixa eu respirar.
- Peraí, Chico. Não vai embora. Me ajuda a levá-lo pra cama – ordena a esposa - O sofá é desconfortável.

Após mais alguns gemidos e lamentos, o marido está acomodado na cama e Chico de volta à portaria.

- Agora fala. Você sofreu um acidente? Por que não me ligou, homem?
- Val... eu te conto, mas devagar, por favor. Eu tava saindo do trabalho... e queria tomar uma cervejinha.
- E?
- Resolvi entrar naquele pub estranho... o de vidro fumê... como se chama mesmo? – pergunta-se Ari.
- Não enrola. E aí?
- Urgh... minha costela... deixa eu virar, peraí... pronto. Aí tinham quatro caras sentados lá dentro... e um negão monstruoso, perto da jukebox, na penumbra. Ele ficava sorrindo e eu só enxergava os dentes... malignos.
- Desembucha logo, Ari!
- Então os caras me envolveram, pediram cervejas por conta deles e, quando resolvi vir embora, me seguraram com uma conversa estranha. Pareciam mafiosos. Falavam sobre Grécia antiga, tribos indígenas, esfinges e... – Ari aperta os olhos como se não quisesse lembrar.
- Continua.
- Até chegarem ao que eles chamavam de “a pergunta primordial”. Aí me fizeram a maldita pergunta.
- Pergunta? Que pergunta? – Valéria treme de curiosidade.
- Queriam saber se eu prefiriria chupar um pau ou dar o cu. Cristo, que vergonha! – se contorce Ari.
- Ai, não!
- Eu respondi dar o cu, mas achei que fosse só uma pergunta retórica! Urrrgh! – geme Ari ao contrair o abdômem para pegar água na cabeceira.
- Para! Para! Eu não quero ouvir mais nada – Valéria desvia o olhar para a janela e coloca a mão na testa.
- Chupar é um ato muito íntimo, Val.
- Merda! Merda! Merda! – desespera-se a esposa.
- Então o mais esquisitão deles chamou o negão, virou pra mim e disse: Ari, você vai chupar o Lindomar. Ajoelha aí.
- Mas você não escolheu dar o cu, homem de Deus?
- Esses caras eram sádicos, Val!
- E aí, você chupou? Não protestou nem nada? – revolta-se a esposa.
- Eles pareciam armados, Val! Preferi não reagir!
- Então...?
- O negão colocou aquela coisa gigante na minha cara, aí eu não aguentei e... vomitei no pau dele.
- Vomitou no pau do negão? Aff...
- E o negão se ofendeu. Parou de sorrir na hora e me jogou em cima da jukebox. Acho que foi aí que eu fodi minha costela. Depois todos começaram a me chutar. Saí de lá me arrastando, enquanto os caras riam da minha humilhação. Na fuga eu só conseguia pensar em você, meu amor... me sentia tão envergonhado.

Valéria agarra o marido com força e começa a beijá-lo por toda a face.

- Devagar, Val!
- Acho que você foi muito macho, meu amor. Não me envergonho em nada de você – e abraça novamente o marido.
- Val...
- Diz.
- Acho que... ou melhor, o médico acha que é recomendável eu não viajar amanhã. Ok?
- Rá! Eu sabia! – larga o corpo de Ari sobre a cama.
- Val, o que foi isso?
- Sabia que aí tinha coisa. Você sempre com uma desculpa pra não visitar meus pais.
- Você tá duvidando de mim? Como você pode ser tão... desumana?
- Eu até acredito na sua história, mas também sou capaz de acreditar que você vomitou no pau do negão de propósito!
- Você tá brincando, né?!
- Ah, Ari... – sorri amarga – Quem não te conhece que te compre.
- Pirou de vez.
- Ari, sei como você é um cara esperto e oportunista. Talvez tenha sido isso que me encantou em você. Graças ao seu oportunismo temos essa casa e tanto dinheiro. Também graças a ele eu tô cada vez mais sozinha e infeliz. Você não viaja mais comigo, sequer até a Baixada pra ver meus pais.
- Você é louca? Fez toda essa leitura a partir do meu incidente com o negão?
- Você é maquiavélico, Ari! Você olhou pr`aquela pica gigantesca e viu nela uma grande oportunidade de fuga.
- Val... você tomou seu remédio hoje?
- Não me chama de louca porque quem tem problemas aqui é você. Pode ficar aí nessa cama. Eu vou sozinha... e não sei se volto.

Val bate a porta do quarto. Ari acomoda-se em meio às almofadas e sorri triunfante.