terça-feira, 1 de março de 2011

O Apocalipse segundo Jucelino


Molhado pela chuva morna de fevereiro, estafado pelo laboro ingrato, e com o estômago reclamando, Jucelino via aproximar-se o derradeiro ônibus. O último dos três que tomava pra voltar do trabalho à sua casa. Apenas mais um lotação fazendo jus ao nome. Nada animador. O ponto de parada, debaixo do hospital da criança deficiente, abrigava enormes mulheres, sujeitos encardidos, alguns aleijados e, claro, crianças, muitas crianças desgraçadas, e todas choravam convulsivamente. Pouco para resgatar Jucelino da letargia. É impossível qualquer sentimento de misericórdia mútua entre condenados.
Antes mesmo do ônibus traçar seu rasante, a massa já se precipitava rumo ao meio-fio. Um suicídio coletivo? O compacto de corpos úmidos lançou-se para dentro do veículo. Ao entrar, Jucelino sentiu a face pegar fogo. O motorista sorriu-lhe diabolicamente e desembestou-se. O interior da charanga era como um pequeno apocalipse. Pequeno? Bom, talvez para essas coisas não exista um senso de proporção. O calvário de cada um pode ter o tamanho que for, vai ser sempre um calvário. Uma conjunção de forças demolidora. Certo é que, à sua frente, Jucelino não via um apocalipse suntuoso, tipo hollywoodiano, dantesco... via o apocalipse real, que começa a queimar por dentro, e mata devagar.
O motorista conduzia a fila de desvalidos com fúria. Trancos, freadas repentinas, curvas inesperadas. O ranger da carroceria lembrava o som de uma grande galinha. O odor nauseabundo do interior do veículo, composto de suor e imundícies, incomodava menos a Jucelino que o contato físico com os outros passageiros. Mal conseguiam se mexer. A chuva apertava lá fora e mais pessoas molhadas entravam pela porta da frente. Ao despertar por um momento, Jucelino começou a ouvir um canto, mais parecido com a prece de um faminto, que chegava a seus ouvidos misturado a leves apupos de escárnio.
Um violeiro, em meio ao caos, tentava angariar esmolas, ou quem sabe catequizar o povo à sua volta com alguns versos:

A nós descei, divina luz!
A nós descei, divina luz!
Em nossas almas acendei
O amor, o amor de Jesuuuus!

A canção do miserável despertou a multidão. Mas não da forma desejada. Os viajantes se converteram em demônios zombeteiros. O líder da desordem era o cobrador, que atirava insultos e sorria cheio de maldade. “Jesus tá bem longe daqui, mano. Aqui quem domina é o chifrudo”. Ao redor, outros demônios gargalhavam. Jucelino observou uma frágil mocinha de cabelos oxigenados transfigurar-se. A boca crispava-se em um sorriso torto, enquanto os olhos ainda guardavam a tristeza eterna. Logo todos se juntaram à opressão. Até mesmo uma frágil idosa de pele cinzenta. “Que o diabo carregue esse violeiro daqui. Já não basta tanta desgraça?”. Ainda em transe, o sujeito não se deixava intimidar. Mesmo sem espaço algum, conseguia dedilhar o violão remendado. E cantava com ardor:

Vinde, Santo Espírito
E do céu mandai
luminoso raio!
Vinde, Pai dos pobres,
Doador dos doooons,
Luz dos coraçõõões!

Inflamados pelas provocações do cobrador, alguns rapazes gritavam em uníssono: “Satã! Satã! Satã!Satã! Satã! Satã!” O cantor solitário ainda defendia sua canção com valentia, mas em suas notas já demonstrava sinais de irritação:

Grande defensor,
Em nós habitai
e nos confortaaaaaai!
Na fadiga pouco,
no ardor brandura
e na dor ternuraaaaa!

Aos olhos de Jucelino, os demônios inspiravam muita pena e pouco horror. Porém quem era ele para julgar? Ali não havia sinais de salvação. Nenhum arcanjo Gabriel para empunhar a espada contra infiéis. Apenas o chato e seu violão, empunhado de forma guerreira, como reconheceu Jucelino. Mas demasiado humano que era, perdeu a classe após muitos insultos à sua fé. “Sou servo do senhor, vocês riem porque servem ao outro, ao inominável”. Alguns riram como quem ri de uma criança birrenta e inofensiva. Talvez esperassem uma reação mais virulenta. Em tom irônico, o cobrador retrucou: “Inominável? Mas tá falando difícil hein mano?! Aposto como nem você entende o que canta. É ou não é?” Jucelino não deixou de estranhar o fato do violeiro se manter alheio enquanto era xingado e encher-se de fúria ao perceber olhares condescendentes à sua volta. “És tu pecador! És tu o inominável! Tu e todos esses demônios aí, que me arreganham os dentes. O inominável está em cada um de vocês. Por isso sofrem! E vão queimar pra toda a eternidade!” Aquela verborragia condenatória jogou na lona a paciência dos passageiros. Mesmo o cobrador se desinteressou pelo pregador. O próprio Jucelino via no miserável uma besta do apocalipse anêmica demais.
Mergulhado no blecaute das ruas, o ônibus enfim parou. O violeiro levantava seu instrumento como uma espada. Ao ver a porta se abrir, bradou contra todos. “Vocês estão condenados. Condenados a viver na escuridão! Marchem pra fora! Assim ordena o Criador!” De cabeças baixas, desciam os passageiros, inclusive Jucelino. Pareciam realmente marchar rumo à danação. Após descer o último passageiro, uma voz grave e cortante, talvez a do próprio Criador, dirigiu-se ao violeiro: “Desce daí! É ponto final pra você também, seu maluco!”