quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Pelados na novena

Seu Amadeu, síndico do edifício Santa Paula, vinha pela calçada fumando um cigarrinho. O vício era responsável pelo abjeto tom amarelo do bigode, e também pela voz cavernosa. Ao vê-lo aproximar-se do prédio, o porteiro Raimundo empertigou-se e abriu o portão antes do síndico apertar a campainha. A reverência do porteiro parou por aí.
- Oxente, seu Amadeu?! Voltando cedo assim pra casa?! Não vai ao boteco do Olavo hoje? Vai ter jogo da Lusa agorinha, sabe não?
-Hoje é o primeiro dia da novena. Fiquei de receber as pessoas e comandar as orações no salão. Acompanha o jogo aí e me avisa se sair gol. Vê se não dorme no posto, cabra. Se te pego cochilando de novo, já sabe...?!
-Cochilando o que, seu Amadeu!? Sou disso não. Aliás, o povo já começou a chegar.
Subitamente, síndico e porteiro começaram a cochichar. Falavam assim quando o assunto era a vida de outros condôminos.
-Ah é? Quem tá aí dentro?
-Seu Duílio.
-Ave Maria! Num vou com a cara desse velho tarado. Pior é deixar ele aí dentro sozinho, na companhia da santa. Ele tá composto, pelo menos?
-Hehe. Tá sim. Mas cedinho ele foi à padaria com aquela calça de pijama transparente, a da braguilha aberta, sabe qual é?
-Sem vergonha exibido! Se eu pudesse, despejava daqui sem dó! Opa, tá chegando gente. Aham... boa noite. – tentou aveludar a voz áspera.
Do elevador saiu a viúva Doralice, sessentona alta e esguia, de beleza ainda viva. Ela gentilmente segurou a porta enquanto a fiel Magali, senhora maltratada pelo tempo, puxava para fora a cadeira de rodas de sua irmã mais velha, Conceição. A anciã incapacitada tinha o semblante carregado. Sua amargura era sentida à distância. Normalmente, as pessoas evitavam olhá-la de frente, por pudor ou sei lá o quê.
Pelas escadas, surgiu seu Tide, um pequenino idoso cheio de disposição. Era gentil com todos, mas só tinha olhos mesmo para Doralice. Nas mãos, alguns botões de rosa amassados. Ao ver as senhoras, ele os distribuiu.
- Oh! Seu Tide é sempre um gentleman. – comoveu-se Doralice, com sua voz melodiosa de coralista da igreja, para em seguida dirigir-se firme ao síndico – Seu Amadeu, já bati em alguns apartamentos, mas acho que hoje não desce mais ninguém. Vamos pro salão?
- É o que eu ia dizer, Dona Doralice. Já passou da hora. Não vamos deixar a Nossa Senhora esperando, né!? – Seu Amadeu, ex-militar, bem sutilmente deixava claro que não estava habituado a receber ordens de uma mulher.
As três senhoras entraram primeiro, seguidas por seu Amadeu e seu Tide, que fez questão de deixar todos passarem à sua frente. O excesso de salamaleques do velhinho parecia incomodar o síndico. Dentro do salão, o grupo se deparou com seu Duílio, de cabelos engomados, vestindo um blazer xadrez antiquado. Ao vê-lo, Conceição acentuou o amargor da expressão. A única a cumprimentá-lo foi Magali:
- Seu Duílio!? Como vai o senhor? Pensamos que não vinha mais ninguém.
- Chh... Chh... Cheguei faz tempo! – A gagueira do velho se manifestava apenas ao iniciar frases.
O cenário do salão era enxuto: apenas uma mesa, coberta por uma toalha de renda impecável, uma jarra d`água e outra com suco de laranja, a imagem de Nossa Senhora Aparecida, ao centro, e algumas cadeiras encostadas nas paredes.
Seu Amadeu postou-se de pé à cabeceira. Todos guardaram silêncio. A solenidade foi quebrada pelo som da folha de papel que o síndico tirou do bolso e desamassou. Olhares curiosos voltaram-se para ele.
- Bom, antes de começarmos, queria fazer uma... digamos... elucidação. Hoje em dia, a internet nos deixa a par de muitas coisas e, minha netinha, que é fera nessas coisas, imprimiu esse texto. Aqui explica um pouco o termo novena, que talvez nem todos conheçam a fundo... – Seu Amadeu colocou os óculos e iniciou a leitura de um artigo da Wikipedia – Novena é um encontro para orações, realizado durante o período de nove dias, daí o nome novena. Por excelência, trata-se de uma tradição com origem no imaginário da tradição católica, mas pode ser encontrado em outras tradições ou crenças... me perdi aqui, um momento.
Ao perceber que a narração ainda seguiria em frente, Conceição revirou os olhos e respirou fundo em desagravo, o que motivou Doralice a frear o ímpeto do síndico.
- Seu Amadeu, o senhor me desculpe. Sei que é a primeira vez que conduz as orações, mas acho isso desnecessário. Sabemos o significado de uma novena. Além do mais, se atrasarmos muito vamos acabar perdendo a novela, que tá pegando fogo nos capítulos finais, né gente!?
Conceição e Magali sacudiram a cabeça afirmativamente. O síndico, a contragosto, acatou:
- Claro, claro. A novela é o mais importante de tudo, não é!? Vamos começar. Demos as mãos.
BLAM BLAM BLAM
Para impaciência geral, agora alguém batia forte na porta. Mesmo sem qualquer permissão, um rapaz de capuz e arma em punho entrou no salão. Todos ficaram assombrados.
- Opa, desculpa aí gente boa, mas é que a gente tá assaltando o prédio. Quero ver todo mundo quieto, sem falar ou se mexer, senão leva chumbo, tá ligado!? Tem nenhum surdinho aí não né?! Ótimo!
- Tá brincando, moleque!? Ponha-se daqui pra fora! – indignou-se a voz cavernosa de Seu Amadeu.
O assaltante deteve-se por um instante, examinou os presentes e, quase gargalhando, expôs a idéia que tivera.
- Eu vou sair mesmo, ô do bigode. Mas vocês ficam aqui... pelados. Quero ver alguém fugir assim. Dou trinta segundos pra geral tirar a roupa. Um, dois, três... Vamo, porra!
O grito fez todos estremecerem, porém ninguém ameaçou se despir.
- Deixa eu ver em quem atiro primeiro... ah, na tia da cadeira ali. Já tá com o pé na vala mesmo.
CLICT
-Não! Peloamordedeus! – implorou Magali, enquanto desabotoava a blusa.
Seu Duílio já estava sem camisa. Os outros começavam a se despir lentamente. Menos Conceição, que de tanto pânico desmaiou. Magali desesperou-se ainda mais:
-Acudam aqui, minha nossa senhora!
-Cala a boca! Ninguém se mexe. Vamo colocando as pelancas pra fora aí. Cês tão ligados que o “paraíba” da portaria tá com o cano na cabeça? Tem ninguém para acudir não. Vou é fuzilar geral.
-Paraíba filha da puta! Devia estar ferrado no sono quando entraram. Por mim pode atirar nesse jumento! – esbravejou o síndico de cuecas.
-Logo se vê que o senhor não tem moral alguma pra conduzir uma novena. – ultrajou-se Doralice, que exibia formas ainda firmes sob a lingerie recatada.
Seu Duilio já estava totalmente nu. Era o único a não aparentar terror. Tal tranquilidade chamava a atenção dos outros, ainda resistentes em seus trajes menores.
-É pelado, porra!
Pronto. Todos ficaram nus. Magali chorava baixinho, escondida atrás da cadeira da irmã desmaiada. A viúva Doralice, mais desamparada do que nunca, tapava os seios e o sexo com as mãos. Seu Tide cobria as vergonhas com uma bandeja, assim como Seu Amadeu, único a fulminar o assaltante com ódio. Seu Duílio parecia estar em uma praia nudista, pois não cobria nada e tinha a face e o pescoço rubros.
- Todo mundo quietinho. Vou sair e trancar a porta. Se gritar, o porteiro morre. Já avisei. – Com uma trouxa de roupas na mão, o jovem assaltante retirou-se.
Apenas o choro esquálido de Magali quebrava o silêncio no salão. Ninguém se dignava a levantar o olhar para o outro. Subitamente, seu Tide saiu da letargia para assumir uma postura heróica. De forma desajeitada, ele colocou a santa e as jarras no chão e, com muita dificuldade, tentou arrastar a pesada mesa para o canto. As mulheres o fitaram por um momento, mas a visão do velhinho pelado se esforçando daquela forma era degradante demais.
- Que cê tá fazendo, homem? - indagou confuso o síndico.
-Não tá vendo? Vou virar a mesa para as mulheres se abrigarem atrás dela. É o mínimo que podemos fazer por estas senhoras.
-Mas você não vai conseguir fazer isso sozinho. – Seu Amadeu achava aquilo uma babaquice inútil, mas cerrou fileira com seu Tide. E para manter a fama de durão, emendou uma ordem para o distraído seu Duílio. - E você aí, não ajuda? Isso aqui não é um camping naturista, seu velho safado!
Seu Duílio se espantou com a reprimenda, mas caminhou obediente até a mesa para ajudar na missão. Juntos, os três se esforçavam pra virar a mesa de lado. Quando se abaixaram para concluir o serviço foram surpreendidos por um grito terrível. Conceição recobrara a consciência e agora tinha, à sua frente, três bundas nada formosas empinadas em sua direção. Magali correu para tentar acalmar a irmã, porém Conceição estava histérica.
-Saiam de perto de mim! Saiam de perto da Santa! Vocês são todos tarados. Vão queimar no inferno! Vão queimar no inferno!
-Calma, minha irmã. Você não se lembra do assalto? – As tentativas da irmã só exasperavam ainda mais a senhora.
-O que estes depravados fizeram com você? Cadê sua roupa? Isso só pode ser um pesadelo! Me tirem daquiiiiiiii. Socoooooooorro!
Desorientados, os três senhores se espremeram no canto, perto de uma porta de vidro que levava à garagem. Doralice se aproveitou do abrigo improvisado e entrincheirou-se atrás do mesão. Ficou de lá assistindo o caos reinante.
-Não grita, pelo amor de Deus! Eles vão matar o porteiro, minha irmã.
-Me tirem daquiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!
Em meio à confusão, seu Tide olhou para trás e viu, através da porta de vidro, uma família inteira os espreitando da sacada do prédio vizinho. Fez para eles uma mímica desesperada. Pedia que ligassem para a polícia, mas os vizinhos pareciam não entender a mensagem, pois responderam com insultos inaudíveis.
Magali virou a cadeira da irmã para a parede. Conceição parou de gritar, mas caiu em prantos sofridos. Entre soluços balbuciava:
-Como pode? Um espetáculo nojento desses... na frente da santa. Malditos... tarados... Magali, quero você fora da minha casa. Vai mendigar na rua, mas comigo não mora mais...
Agachados pelo salão, todos mergulharam em profundo pesar. Após alguns minutos, seu Amadeu despertou do transe. Caminhou até a porta e começou a esmurrá-la aos berros.
-Abram essa meeeerda! Seus covaaaardes! Podem me matar, seus filhos d`uma puta! Eu sou muito é homem, seus viaaaados!
O síndico gritou até perder a voz. Em certo momento, o alarido surtiu efeito, pois do outro lado alguém enfiou a chave atabalhoadamente na fechadura. Magali estremeceu.
-Ai, meus Deus! Voltaram pra matar a gente.
Surgiram as figuras de dois policiais fardados.
-O que é isso aqui afinal de contas? – parecia não acreditar no que via um dos policiais.
-Graças aos céus! – suspirou Magali.
O porteiro vinha logo atrás dos policiais. Agoniado, tentava explicar o acontecido.
-Seu Amadeu! Eu falei que teve um assalto. Os bandidos tavam aqui até agorinha, mas eles dizem que receberam outro tipo de denúncia. Acredita nisso?
-Cala a boca, seu asno! Sei que a culpa disso tudo é da tua molenguice! Preguiçoso de merda!
-O senhor se acalme, por favor! Cadê a roupa dos senhores? Ô porteiro, pega alguma coisa pra eles se cobrirem. Negócio é o seguinte: os moradores do prédio ao lado fizeram uma denúncia de ato obceno ocorrendo neste local.
Ao ouvir a voz da autoridade, Conceição suplicou:
-É isso sim senhor! São todos uns tarados sem o menor respeito pela santa. Me tire daqui, por favor! Me salve, seu policial! Me salve!
-A senhora está louca? – descabelou-se, seu Amadeu.
-Silêncio! Vamos averiguar tudo que aconteceu aqui. Vocês três se cubram e venham até aqui fora prestar esclarecimentos.
-Como assim três? Onde estão seu Tide e dona Doralice? – observou Magali.
-Virge Santa! Tavam aqui agorinha. Pra onde escapuliram? – questionou o porteiro, ainda sob a mira implacável do síndico.
A pedido da polícia, o porteiro subiu até os apartamentos dos dois sumidos, mas ninguém o atendeu. Pensou em procurar nas escadas, mas ao ouvir risinhos abafados vindos de lá, deteve-se. Era um momento especial. Achou melhor não interromper nada. Desceu novamente para a portaria.

terça-feira, 16 de março de 2010

A loja

- Onde eu tava com a cabeça quando embarquei nessa?
- Estava com a cabeça na bufunfa, queridinho.
-Queridinho?! O que houve com você, Cardoso? Só porque da noite para o dia assumiu que é gay vai passar a falar desse jeito? Se olha no espelho! Um senhor de bigodes!
- Ai como você é veeeelho, Armando. Eu sempre tive o mesmo jeito de falar. É que com você precisei ter outra... digamos... postura! Aliás, todo mundo precisa ser meio careta ao seu lado. É fato. Pensa bem, te dei várias pistas. Lembra das minhas assaduras de fundo emocional? Pois é. Só você pra acreditar nisso.
- Que nojo! Cardoso, eu nunca fui preconceituoso, você sabe. Quando você me chamou para ser sócio nessa loja de coisas... hum, fálicas, eu estranhei, mas levei a sério o potencial do negócio. Afinal, o que mais tem em São Paulo é viado e engraçadinho descolado. Enfim, cliente não ia faltar. Só que agora você decidiu jogar merda no ventilador, né?
-Não são coisas fálicas, Armando. É piroca mesmo. Cacete. Rola. Jeba!! Shampoo, chocolate, pasta de dente, tubo de chantilly, biscoito para cachorro e tudo que se possa imaginar no formato de um latejante caralho! Entendeste agora?
-Fala baixo! Olha o cliente aí.
Uma menina cadavérica e um gordinho de topete laranja entram na loja. Os dois parecem encantados com a variedade de produtos disponíveis. Após uma rápida olhada nos cosméticos, vão para o setor de comestíveis. Entre cochichos, o gordinho comenta com a amiga:
-Não te falei? É tudo em formato de pinto. Esses caras são geniais. Leu a entrevista de um deles para a revista Negócios SP? – A menina balança a cabeça afirmativamente e lança um olhar simpático para Armando e Cardoso, estáticos atrás do balcão.
Com passinhos curtos, o gordinho se aproxima dos dois e desabafa:
-Amei a loja. Vocês têm a cara de Sampa. Tipo... uma cidade assim... de pessoas corajosas, empreendedoras, que dão a cara para bater, que se assumem de ver-da-de. Ai, desculpa... tô sendo chato? Tô falando demais? Então...
Armando, com um sorriso melancólico, sentia o estômago revirar à medida que o gordinho perdia o fôlego. Não tinha porque ser admirado, refletia. Afinal, montara esse negócio esdrúxulo com Cardoso, até então um machão convicto, porque parecia uma forma bem-humorada de levantar dinheiro para abrir seu escritório de consultoria financeira. Não estava em seus planos ser alçado à categoria de personalidade gay. O fato é que após a entrevista de seu sócio, todos achavam que ele e Cardoso formavam um casal, concluía com horror.
Alheio às preocupações de Armando, Cardoso gentilmente mima os visitantes:
-Ai, imagiiiina. Vocês é que fazem o sucesso da loja. Fico é contente em saber que não vivemos mais numa era tão careta, sabe? Vocês não viveram na ditadura, nem sabem como era... Bom, deixa eu mostrar para vocês umas novidades. Já viram estes fantoches? É para teatrinho de adultos, ok? Nada de dar para a sobrinha. Rárárárá...
Armando se contorcia. Porra! O Cardoso era um funcionário público salafrário que mamava nas tetas da ditadura. Como pode ser tão cínico? – se questionava, cada vez mais moralista.
A menina, menos deslumbrada, muda de assunto:
-Meu, como vocês conseguiram tantos produtos nesse formato? Deve ter um milhão de paus espalhados por aqui – Todos riram, menos Armando.
-Se-gre-do. Eu sou um businessman, né gente?! Tenho muitos contatos. – respondeu Cardoso, com as mãos na cintura, mais afetado do que nunca.
Antes de ir embora, o gordinho comprou um pênis de chocolate meio amargo para presentear um colega de trabalho hetero. “Só de zoação”. Armando pensou em como o sucesso da loja estava associado ao crescimento do consumo irônico. Todo mundo vive colocando malícia infantilóide nas coisas. Odiava essa turminha irreverente. Se sentia deslocado naquele ramo, apesar das boas vendas. E para completar, a fanfarronice do sócio, estampada em uma revista de grande circulação, o deixara realmente puto.
-Olha para isso, Cardoso! Todos pensam que somos um casal! Eu devia te cobrir de porrada, mas acho que você vai é gostar...
-Vou mesmo. Agora fica calmo, pensa comigo: a entrevista foi uma grande jogada de marketing. A confissão de minha homossexualidade é só um detalhe. Pouco importa. O importante é que o interesse pela nossa vida privada vai atrair mais e mais clientes.
-Jogada de marketing é o caralho! Você sempre foi um enrustido e aproveitou os holofotes para sair do armário. Só não precisava mentir a meu respeito.
-Não coloque palavras na minha boca. Eu não disse nenhuma mentira.
-Não disse? Vou ler o maldito trecho para refrescar sua memória: “Não nego minha homossexualidade, já o meu sócio é bastante discreto. Jamais faria uma confissão dessas. É um direito dele. Mas posso revelar que a empatia entre nós, torna o sucesso da loja mais consistente. Quando a gente se une a alguém que gosta, o resultado é sempre feliz...”. E por aí vai... puta que o pariu!! Se isso não é chamar alguém de viado publicamente, eu não sei o que é!
-Desencana, Armando. Somos personagens da vida paulistana. Estamos sujeitos a fofocas. Vai por mim, isso é bom para o negócio.
-Vai falar isso para a Dulce! Por mais que eu repita a ela que nunca tive um caso com meu amigo de infância, ela sempre ficará desconfiada. Meus amigos do boliche agora acham que eu mordo a fronha desde criancinha.
-Nossa! Eles pensam isso? Será que é porque você abriu uma loja de caralhos chamada Here comes the fun no meio da rua Augusta? Ou será por motivos mais secretos? Conta pra mim, Mandinho.
-Dobra tua língua, safado! Só dei essa bandeira toda porque achei que nossa parceria renderia grana. Mas não era esse tipo de “parceria” que eu tinha em mente. Você vai se retratar publicamente!
-Ora, não delira. Depois sou eu que tenho mania de grandeza. O que está feito está feito. A Dulce que se lixe. Se te trata desse jeito é porque não merece você.
-Vou te mostrar o que VOCÊ merece. – Armando empurra Cardoso com violência sobre uma mesa repleta de velas em forma de pênis. Várias se quebram no chão.
Cardoso levanta possesso com a atitude do sócio:
-Aaaahhh! Ficou doido? Olha o prejuízo, seu mané! Essas velas são importadas do Brunei!
-Eu vou quebrar cada falo desses na tua cabeça até você ir se explicar com a Dulce e com o jornal.
-Rárárá. Não seja patético! Você acha que eu deixei de ser homem porque me assumi? Te quebro a cara se encostar em mais alguma mercadoria. Experimenta!
-Vamos ver.
Armando tenta dar um soco em Cardoso, mas é surpreendido pelo sócio, que amortece o golpe e o imobiliza. Roxo de raiva, Armando vocifera:
-Bicha escrota! Esse é o braço que tem um pino, espera até eu te pegar com o outro. Arrrgggh.
-Eu fiz aulas de defesa pessoal, sabia!? Agora, fica calminho, nenê.
Dulce entra na loja e presencia Cardoso dando uma gravata em Armando. Transtornada, se despede sem avaliar a situação:
-Como fui idiota em querer me meter na relação de vocês. TCHAU, Armando!
Cardoso solta o amigo e ele corre para a porta.
-Dulce!
Armando tenta perseguir sua namorada porém é puxado de volta para dentro da loja.
-Eu não acredito! Você quer me deixar puto mesmo, pois então ago... – Aflito, Cardoso o interrompe.
-Shhh! Olha ali.
-Oi?
-Não tá vendo? Encostados no carro ali. Um bando de carecas! E tão armados, pode acreditar! Esses caras tão afim de confusão, Armando. Vamos fechar a loja. Chama a polícia!
-Ora, vai se foder! Eu vou atrás da Dulce. Cadê sua defesa pessoal agora? Tomara é que te comam na porrada mesmo.
-Cuidado, Armando!
O crânio de Armando é golpeado com um cano de alumínio, enquanto o sócio é arrastado para os fundos da loja. Nos fundos, entre um insulto e outro, Cardoso leva uma surra impiedosa. Pior sorte teve o inconsciente Armando. Atirado no chão, não pode se defender de vários pisões na cabeça. O sangue saía pela boca, pelos ouvidos, pelo nariz e lhe empapava os cabelos.
A entrevista para a revista Negócios SP tornou-se irrelevante. Nos dias que se passaram, Cardoso experimentou uma fama muito mais consistente. Manchetes denunciavam a violência sofrida por ele e o amigo, grupos gays pediam justiça, a população repudiava a existência de jovens neo nazistas e a discussão fervia em tudo quanto é canto. Mas infelizmente, o nome mais citado era o de Armando Queiróz, que não resistira aos ferimentos e agora era alçado à condição de mártir da causa homossexual.
Mesmo com menos dentes na boca, Cardoso convoca órgão de imprensa para soltar o verbo:
-Gente, isso passou do limite! Não foi um ato cometido por alguém que ganhou um pinto de chocolate e não gostou, entendem? Esse tipo de reação não cabe mais nos dias de hoje. Eu vivi os anos de ditadura, sei como era terrível. Parece que a repressão está de volta! Meu companheiro está morto e essa tragédia tem que servir para discutirmos mudanças na maneira de enxergar o público LGBT. Chega de reclusão e intolerância!
Dulce prefere se recolher. Cardoso vira a viúva oficial de Armando. Fica em evidência durante alguns meses, aparece no programa de Luciana Gimenez na TV, mas aos poucos some da mídia.
Seis meses depois, Cardoso reaparece. Agora à frente de um movimento gay, decidido a emplacar um pacote de leis municipais à favor do direito dos homossexuais manifestarem sua opção sexual em locais públicos. Também pediam punição específica para atos que infligissem tais direitos. O pacote de leis, aprovado pela câmara, é batizado com o nome de Armando Queiróz, mas popularmente é conhecido como Lei Arco Íris.
Ao repórteres, Cardoso declara emocionado:
-Esse é o ato final. Seja onde estiver, agora Armando está mais feliz. Descanse em paz, meu amigo.