sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Eu, Croquete

Podia dizer que minha vida foi em vão. Afinal, aqui estou há quase 24 horas, deteriorado e sem perspectiva alguma de ser ingerido. Inclusive, sinto a consciência me fugir, à medida que salmonelas consomem meu interior. Apesar de estar azedo, posso, pelo menos, oferecer um testemunho sobre o que vivi. Talvez assim a minha trajetória não se torne uma inutilidade completa.

Ainda jovem, na manhã de ontem, quando eu era um croquete fresquinho e vistoso, compartilhei esperanças com outros colegas de estufa. Pura diversão. Não tínhamos muitos objetivos na vida. Podíamos ser comparados a uma turma de calouros, que deseja se enturmar e experimentar o máximo de sensações possíveis. Afinal, nossa existência é tão efêmera... então tudo deveria ser encarado como uma agradável novidade. Mas não foi bem assim.

Fizeram parte de minha geração algumas coxinhas, sensuais e douradas, cientes do papel de prestígio que desempenham nas refeições cotidianas, tinha também uns poucos quibes, inatingíveis como príncipes exilados, uma meia dúzia de bauruzinhos, tipos leves e descompromissados, além de outros irmãos croquetes. Irmãos? Bem... não chega a tanto. A consciência de nossas origens nebulosas gerava desconfianças mútuas. Na outra ponta da estufa, instalaram-se algumas salsichas empanadas, totalmente desordeiras. Tais tipos me provocavam certo desconforto. Não era preconceito, mas sabe como é!? Às vezes o santo não bate. Aliás, preconceito mesmo, quem sentiu na pele fui eu. Como disse antes, os croquetes não possuem uma receita bem definida. Não sabemos muito sobre nossas origens, ou seja, os ingredientes que nos constituem são pra lá de suspeitos. Repletos de contra-indicações, eu diria. Carnes e temperos obscuros podem ocasionar problemas sérios para quem os consome. O pessoal lá da estufa foi percebendo isso aos poucos. Viramos os mestiços nocivos, os mulatos da turma. Sabe amigo, esse ambiente não é muito diferente da vida na sociedade humana. Nos habituamos às chegadas e partidas, à insegurança quanto ao futuro, aos amores frustrados e também à segregação social. E para completar, quando um croquete chega ao crepúsculo de sua existência, ninguém nos reverencia ou pede conselhos. Querem mais é nos empurrar para a boca de algum cão vira-lata, o que seria uma completa desonra. Deixemos isso para lá por enquanto.

Gostaria de relembrar algo bom, ou quase isso. Se hoje sou imune ao amor, no passado, já experimentei seu contágio. Mais precisamente ontem, ao meio-dia. Uma coxinha enorme, suculenta e crocante, chegou sem pedir licença à nossa estufa. Era a maior do grupo. Uma explosão de nutrição! Deus! Cabia um frango inteiro ali dentro! Perdoem a exaltação. É que nessa época sentia uma carência terrível. Mesmo tendo aquela multidão de croquetes ao meu redor. Sei lá, era como se não falássemos a mesma língua, sabe?! E para piorar, éramos evitados pelos outros salgados. Mas com aquela coxinha foi bem diferente. Ficamos inseparáveis. Trocávamos impressões sobre tudo. Ela era muito espirituosa. Vivia fazendo piadas com a barriga do cozinheiro, criticando de maneira mordaz os fregueses que passavam ali pelo nosso boteco, enfim, era uma coxinha à frente do tempo dela. Mas sabe aquela máxima melancólica dos homens, que diz que a felicidade dura pouco?! Pois é, comprovei a teoria. Sempre comentávamos entre gargalhadas o ar blasé e afrescalhado dos sanduíches naturais. Ela me matava de rir quando os imitava. Realmente, não dava para levá-los a sério. Ainda bem que viviam isolados lá no freezer. Afinal, eles não agüentariam um segundo da vida na estufa, amigo. Aqui a chapa esquenta, tá ligado? Pois então... Acabei me estrepando. De tanto implicar, minha amiga se apaixonou perdidamente por um deles. Viviam se acenando, ou fazendo mímicas apaixonadas. De uma hora para outra eu me tornei um confidente. Meu peito ardia ao ouvi-la dirigir palavras melosas ao tal sanduichezinho. Ó injustiça! Tive que me afastar de minha rotunda paixão. Pior é que ela mal percebeu, tão atraída que estava pelo meu frio oponente. E foi à distância que vi o suplício terminar de forma dramática. Todo salgado feito ao meio-dia possui vida curtíssima. Essas pobres almas são vítimas de uma convenção alimentar mundana, conhecida como almoço.

Um gordo suado a devorou sem dó. Fechei os olhos para não ver a cena, enquanto os demais habitantes da estufa se alvoroçavam com a perda repentina. Horas depois, o “Romeu” afrescalhado de minha amada foi consumido por uma madame. Ele também não devia estar se sentindo bem, pois a madame começou a empolar ali mesmo, intoxicada pela amargura do sujeitinho. Depois dessa tragédia, procurei evitar enlaces amorosos. Fui além. Intencionalmente, me descuidei da aparência a fim de desencorajar qualquer investida feminina.

Minha posição não permite enxergar muita coisa. Apenas pessoas que transitam de um lado para o outro pela calçada. Nunca um tipo interessante. Também pudera. O meu boteco fica pessimamente localizado. Por aqui só passam putas e tipos grosseiros. E sempre encostam a maldita barriga no balcão. Não percebem o quanto isso dificulta minha única distração externa: observar o movimento do puteiro em frente. Nem se animem muito, meus amigos. Só tem bagaço. Aliás, ontem à noite, prestes a completar doze horas de vida, comecei a me identificar com uma delas. Não me entendam mal, por favor. A pobrezinha já tinha certa idade. Era rejeitada até mesmo por homens vulgares, de gostos duvidosos. Sim, acabei me identificando! Afinal, sou evitado por fregueses de péssima reputação alimentar. Ela pelo menos pode fumar um cigarrinho e se afogar em bebida barata... já eu fico aqui nessa escuridão.

Opa, abriu! Nossa! Que dia lindo! Não é hora para lamentos. O fim está próximo e ninguém me ouve nesta choça. Tão logo saia a primeira fritada, darei adeus a esse mundo. Queria dedicar o sol dessa manhã a todos os amigos salgados com quem convivi. Todos engolidos e digeridos, quiçá excretados, ao longo dessas quase vinte e quatro horas. Um brinde a vocês!

Sinto vontade de cantar. Here comes the sun, tchutchururu, here comes the sun. Deus, essas salmonelas começam a afetar meu juízo. Por obséquio, joguem-me logo na lixeira. Não suporto mais ficar nesta estufa vazia, repleta de recordações.

Quem é esse aí que apareceu? Coitado. É tão velho que anda auxiliado por uma enfermeira. Aonde ela vai? Ao banheiro? Hehe. Eu não iria lá se fosse ela. Por que o velhote me encara dessa maneira? O que você quer? Você só pode estar de brincadeira...

- Pois não, senhor?
- Me vê esse croquetinho aqui, meu filho.
- Vixe! Isso taí desde ontem. Péra um pouquinho que já vão sair os salgados novos.
- Tem problema não, meu filho. Se vivi até hoje, não há de ser um croquetinho a me matar. Manda aí.
- O senhor que sabe.

Não acredito. O que este assassino vai fazer? Ele tá me pegando. Ih rapaz, ele tá falando sério mesmo. Vai me colocar na bandejinha e tudo. Não faça isso! Eu tenho uma população inteira de motivos para não ser servido. Pare! Não quero cometer um assassinato nos meus derradeiros momentos de vida. Seria uma mancha na minha trajetória. Malditos celerados! Tenho que evitar isto! Nem que seja meu último ato de nobreza.

- Opa! Desculpa! Caiu no chão.
- O danado parece que rolou sozinho...
- Isso mesmo. O senhor também reparou?
- Reparei que você é muito estabanado, meu filho.
- Sinto muito. Este vai pro cachorro.

2 comentários:

ricardo coimbra disse...

bauruzinhos leves e descompromissados foi bom, titio.mas acho que faltou sangue nesta história.

Olívia disse...

a coxinha dourada é sempre a mais cobiçada